Foi em uma manhã de outono,
sentado em minha cadeira de balanço, que os eventos que narro aqui aconteceram.
Atesto-os com toda certeza e posso jurar perante ao Juiz que tudo o que ocorreu
não passa da mais concreta realidade. Era uma quinta-feira, eu lembro como se
fosse ontem, ainda que tenha sido semana passada. Eu havia colocado a chaleira
no fogo e preparava uma farta xícara de chá de erva doce. Não qualquer chá de
erva doce, há um segredo neste meu chá que compartilho com vocês: 3 raspas de
gengibre, nem uma a mais. Raspas finas, é preciso uma faca assiduamente
amolada. Assim, preparei a mistura e em alguns minutos um sonoro apito ecoo
pela cozinha. Sou uma pessoa que se assusta fácil, meus amigos podem comprovar (quantas
histórias hilárias sobre isso...). Num sobressalto larguei a faca que caiu
sobre o móvel da cozinha. Não me subestimem, não me feri ou causei qualquer
avaria. Sou assustado, mas também perspicaz. Delicadamente preparei a infusão
de chá e gengibre derramando a água sobre meu pequeno bule preto. Este é mimo
pessoal. Pessoal por dois motivos. O primeiro é que se trata de um pequeno bule
que serve uma porção de chá que atenderia apenas uma garganta. O segundo é que
fora um presente meu para mim mesmo e acreditem, isso é pouco comum para uma
pessoa do meu feitio. O cheiro já havia preenchido a cozinha e agora rumava
para a sala. Da mesma forma que eu, munido do pequenino bule preto e uma xícara
escolhida aleatoriamente da prateleira, me sentei na referida cadeira de
balanço.
Sou um homem simples, mas como
dizem, “de bom gosto”. Minha mobília é peculiar, comprada em vendas de garagem
e leilões: apenas itens antigos, madeira maciça, puxadores ornamentais e superfícies
entalhadas. De frente a cadeira se encontra uma lareira de tijolos a mostra e
sobre ela uma base de madeira mogno onde enfileiro toda sorte de souvenirs. Como
deixei de comentar este detalhe! Gosto de viagens e em cada uma busco trazer
uma peça que remeta a momentos únicos. Uma pequena estátua de um cão, duas
colheres de metal, uma esfera colorida, um pequeno baú que guarda 2 moedas da Irlanda...
são muitos itens, não faz sentido lista-los aqui para os propósitos deste
relato. Entretanto, o mais importante deles ainda não disse: um relógio, redondo,
anexado a uma base retangular. Nada extraordinário. Sua origem é antiga, não
saberia datar, muito menos soube o vendedor daquela loja do interior. Seus
ponteiros muito firmes soavam tictacs que podiam ser ouvidos do quarto. Vejam,
não sou de me incomodar como tais estímulos, ao contrário, são como um pêndulo daqueles
usados para hipnotizar pessoas. Muitas vezes fico ali, ouvindo. Outras, me
sento na cadeira de balanço e fico observando. Sim, é aqui que tudo começa.
Acompanhem.
Assoprava o chá para esfriar
quando meus olhos deslizaram da xícara para a lenha queimando. Das chamas, como
que por associação, meu olhar repousou naqueles benditos ponteiros. 09h35. Que
magia era aquela, me perguntei. Como esse protótipo construído por mãos humanas
é capaz de me dizer sobre o tempo? Quer dizer, é a passagem das eras, o tenro
passado, o temido futuro. Tudo ali, em duas varetas que se alinham e se desalinham
constantemente. Pasmem, essa inquietação não foi nada comparado ao que viria
nos segundos seguintes.
Beberiquei com cuidado o chá, o
aroma entrou pelas minhas vias aéreas e se espalhou rápido pelo meu interior.
Assim como os tictacs, incessantes, cadenciados, rítmicos e imparáveis. Algo
parecia diferente nesta manhã, eu estava ouvindo, mas com os ouvidos de dentro.
Ora, quem me conhece sabe que não sou uma pessoa versada em medicina, mas meus
conhecimentos de anatomia e fisiologia são suficientes pra saber que não há “ouvidos
internos”, mas ainda assim insisto: estava ouvindo com outro tipo de órgão sensorial,
seja lá qual seja esse. Ouvi cada tic e cada tac dentro da minha cabeça. Os sons
foram se misturando, da mesma forma que nossa imagem se distorce no espelho
quando a olhamos por muito tempo. Nessa distorção – aqueles que já tentaram
saberão – vemos formas e contornos jamais vistos e nos questionamos sobre nossa
percepção. Da mesma forma lhes digo, o relógio conversou comigo. Sei que o
absurdo se encontra na margem de todo pensamento lógico e talvez meu barco a
vela tenha ido longe demais, mas insisto: o que eu ouvi foi real.
-Sabe que você não pode ser... Disse
o relógio. Apenas ouvi, pois não acreditava no que ouvia.
-...feito pra correr. Continuou.
Cada palavra soando junto com as batidas do relógio.
-Vê se tem pra que, você ter que
ter tanta pressa de morrer.
Nessa hora meu coração acelerou. As
palavras eram nítidas e a mensagem parecia direcionada a minha pessoa. Digo, o
relógio me aconselhava em algo muito pessoal. Me aconselhava? Talvez me
questionava em algo que reside no âmago do meu ser. Uma nova pergunta entre
tantas: como saberia disso tudo? Ah, aqui lhes peço perdão, não posso relevar
com detalhes o que contem em “disso tudo”, apenas fiquem com a informação de
que é algo extremamente relevante. Tomei coragem e engatei um diálogo com o
relógio. Escrever essa última frase custou todo meu ceticismo.
-Diz-me, tu que me ouve todos os
dias falar da vida, tu que repousa sobre o calor do fogo, tu que com duas notas
dita o ordenamento da realidade, o que quer de mim?
-Quero que saia do canto que
está. Assim corre pra rua que não sabe onde vai dar.
-O que isso quer dizer? Repliquei.
-Conto cada dia que tem, só pra
saber que entre andar e correr é questão de saber.
-Eu não entendo, tuas metáforas
são complicadas pra mim... Disse quase em tom de súplica, pois sentia ali uma
sabedoria.
-Em cada caso pare para não matar,
não mate o tempo que tem pra falar. Quem tem o que pode sabe que pode parar.
Duas lágrimas correram nesse
momento. Eu entendi o que o relógio disse, mas com o coração de dentro. Não
aqueles de átrios e ventrículos, mas com aquele que compõe a mesma fisiologia
do ouvido interno. Insisti por respostas mais diretas:
-Tu que já viveu os pretéritos,
que vislumbra o futuro, como posso parar quando meu coração acelera, quando meus
olhos me cegam e minha cognição se esvai?
-É certo que sua cegueira resida
no medo da perda. Mais falta faz quem se vai quando vem de esguelha, tropeça e
cai na ponta do pé. O tempo trapaça.
-Sim! Gritei aos prantos. Por que
faz isso comigo?! Por que... faz... Parei no meio da frase, pois lembrei do dia
que comprei este relógio. Como poderia esquecer, me gabo de boa memória. Tantos
relógios na parede e no balcão. Escolhi por sua estética antiquada, como alguns
já me disseram, mas todos ali tinham a mesma função. O nobre trabalho de contar
horas para que nós, viajantes do tempo, não nos perdêssemos em qualquer nostalgia
aguda ou preocupação com o que está além da próxima curva. Sim! Continuei. Tu
fazes exatamente o que faz, me conta as horas, as meias e os quartos. Dizendo
isso, sorri.
-Tudo tem quando não me tem. A
tentação de ter se perde no fim. É certo que tudo que acaba se inicia assim.
Como que um estalo de dedo, a
frase me fez sair daquele transe. A xícara estava pela metade e o chá frio.
Repousei a louça na mesa de centro. Peguei o relógio e o atirei nas chamas. Impulsivo,
podem julgar. Assim também me julguei. Logo molas se soltaram e pularam pelo
fundo de concreto. Vi os ponteiros derretendo e os números se misturando entre
si, virando nada.
Não esperava esta reação de mim,
nenhuma dessas na verdade, por isso este relato é tão importante. Sou ponderado
e comedido, mas o relógio sabia que no coração interno cada susto que levava era
sentido como um rompimento do tecido temporal. Filosofia barata, dirão meus
interlocutores? Não ligo. Apenas peço que acreditem quando digo: o relógio
falou comigo e depois deste dia me livrei de todos os relógios da casa. Não por
medo ou qualquer superstição. Do contrário, jamais ouvi palavras tão acertadas.
Ah! Mas o que mais poderia esperar de uma máquina que marca o tempo exato. Ai
está, meu tempo é vacilante, pendular. Quero ver além de olhar, sem ter que
responder ao mestre dos ponteiros, sem esperar respostas exatas. Não, não para
mim, jamais gostei de contas. Este é um começo.