Meu amigo Allan,
Só agora pude ler sua carta e quantas sensações ela me
trouxe. Não imagino como têm sido esses seus dias de adaptação. Mudar de cidade
sempre me trouxe um temor antigo, quase inconsciente, e você sabe bem quantas
vezes tive que me mudar. Às vezes em que penso em recomeços me lembro quando
fui para aquela cidadezinha do interior. Quantas cartas naquele ano! E como foi
importante tê-lo como companhia nas noites mais frias! Ontem estava arrumando a
bagunça do consultório (como pode este lugar chegar a um estado tão caótico?) e
encontrei aquele texto seu sobre sonhos. Eu comentei naquele dia que as
primeiras frases, assim, se despedindo, concediam um ar todo melancólico que
não me pareciam próprios de algo sobre sonhos. Pois hoje escrevo que não
conseguiria pensar em introdução mais acertada. Ah, meu amigo, afinal sua tia estava
certa, somos mais parecidos do que pensamos! E não falo dos olhos fundos de
noites não dormidas. Esse jeito lacônico de se expressar, esse tom melodioso de
ver, onde irá nos levar? Tenho tantas perguntas agora. Quando escreveu sobre os
grãos de areia, pensava em pessoas ou nos próprios sonhos? Temo estar interpretando
demais e neste momento quero sentir mais do que pensar. “Pensar usando os neurônios”,
este pensar que estou evitando. Quero pensar com a mente, Allan, com a mente (será
que está rindo ao ler esta frase? Eu estou). Veja, meu ponto é que os grãos de areia
podem ser os próprios sonhos, tão dourados como o sol. Mais uma vez me vem sua
tia falando, quase posso ouvir a voz dela me lembrando que havia esquecido de
passar protetor solar. Aquelas férias de verão foram divertidas – mesmo com as
costas queimadas. Somos tão jovens, o que foi feito de nós? Acha que sonhamos
demais? Sonhamos porque temos esperança ou porque a perdemos em algum ponto da
vida? Lembro quando me sentia feliz, mas não é como esse momento tivesse existido
de verdade. Também não é como se não estivesse feliz anteontem comemorando as
primeiras rosas da primavera. Sinto-me velho Allan, esquecido pelos meus
próprios sequestradores que se cansaram de cativeirar e simplesmente partiram.
Catatônico, sonho com a liberdade já concedida a mim. Sinto que meus membros se
atrofiaram pelo ostracismo e agora que desejo me mover apenas não posso mais. Lembro
quando cheguei naquela cidade gelada, o sol não aquecia, eu não tinha sonhos ou
esperança. Não precisava de protetor solar. Quantos beijos na testa já dei
nessa vida, quantas partidas.
Talvez isso seja só minha tristeza.
Um abraço meu amigo,
DRS
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