segunda-feira, 18 de junho de 2012

Desenho da Casa



Uma jovem menina andava pelo campo, uma área cercada por densas árvores. Era uma tarde de inverno e o ar estava silencioso. Ela caminhava distraída, quando escutou o grito de um pássaro vindo de perto. Ela correu em direção ao som, tirou alguns arbustos do caminho e logo encontrou a ave, um corvo com penetrantes olhos vermelhos que a observavam, a observavam profundamente. Porém não foi o corvo que mais lhe chamou atenção, atrás dele havia uma casa... A menina ficou paralisada, uma mistura de medo e curiosidade. Ela deu dois passos a frente, titubeou por um momento, olhou para traz buscando retornar ao corvo, mas ele não estava mais lá.
Era uma antiga mansão, devia estar abandonada há muito anos. A tinta de suas paredes estava gasta, em alguns locais se viam os tijolos. O grande telhado parecia cobrir mais do que apenas a casa. Para enxergar seu topo pontiagudo a menina precisou erguer bastante a cabeça. Em sua frente havia uma grande porta com detalhes entalhados, em cada lado colunas se erguiam para um segundo andar. Em sua frente degraus de madeira vermelha construíam uma escada. Duas janelas já acinzentadas pela poeira do tempo construíam a fachada da casa. A menina se aproximou. No chão um caminho de pedras, ela tropeçou e ralou a perna. Um vento forte passou balançando os cabelos da jovem para o lado oeste da casa e um estranho aroma de flores tomava o ar. Ela seguiu a direção e viu o que um dia deveria ter sido o jardim da casa. A grama havia crescido livremente e muitas plantas aproveitaram para se instalar ali. Viam-se algumas estátuas quebradas e um círculo de pedra que lembrava uma fonte. Bem no centro estava uma árvore que havia sobrevivido ao abandono da propriedade. Seu longo e marcado tronco revelava seus muitos anos ali. Compridos galhos cobertos de folhas amareladas pendiam para baixo, raízes saltavam do chão, mas ainda era majestosa,  tinha uma sublime beleza melancólica. A árvore ficava de frente para a varanda da casa, uma área grande, também com duas colunas de mármore nas extremidades. Um banco de madeira estava arrumado de modo que quem sentasse ali teria uma bela visão do jardim. A menina andou pelas ruínas e ficou imaginando quem teria morado ali, como seria estar naquele ambiente com vida. Sua curiosidade aumentava, ela teve vontade de ver o outro lado da casa. Passando pelos fundos viu no alto uma janela circular que deveria dar para o sótão. Seguiu por um caminho envolto por terra, talvez um dia tivesse sido preenchido por rosas, ou narcisos, ou jasmins... Um buraco! Ela desviou rapidamente de um buraco que havia no caminho. Talvez estivessem escavando por algum motivo. Logo alcançou o lado leste. Havia várias árvores de tamanhos pequenos, pareciam ter frutos, mas a menina não chegou perto para ver. Deu a volta na casa e chegou novamente à entrada principal.
O interesse havia superado o medo e uma excitação agora a motivava. Chegou à porta, virou o trinco e a porta se abriu. Era pesada e ela teve dificuldade para empurrá-la. Estava escuro e havia muita poeira e folhas no chão. Receou, mas seguiu em frente. Era um grande hall e em cada canto havia uma janela. Abri-las foi o modo que encontrou para trazer luz àquele lugar tão escuro e belo. Incrivelmente a claridade vinda de fora deu um toque de vida a casa, ela pode distinguir móveis, quadros, corredores, portas. Tudo era muito antigo. O proprietário deveria ser um amante do estilo vitoriano. O tipo dos móveis e sua configuração lembravam casas antigas, mais antigas do que a idade da casa. “Talvez aqui vivesse um lord!” pensou a menina, divagando com um homem de luvas, cartola e bengala saindo da casa e pegando um ônibus. Soltou uma risada que ecoo pelo cômodo. Sentiu um arrepio... ainda havia ali algo que lhe causava certo medo. Andou um pouco e chegou a um corredor. Nele havia muitas portas, sistematicamente colocadas ao lado da outra e de frente uma para a outra. No fim do corredor estava uma escada forrada por veludo vermelho escuro.
Resolveu investigar. A primeira porta dava para uma cozinha. Estava quase vazia, salvo uma pia e um armário com pratos. Duas cadeiras estavam caídas no chão. Rapidamente saiu e entrou em outra porta. Ali estava uma mesa comprida de madeira. Quadros ornavam as paredes, um deles muito curioso representava um barco em meio ao oceano. Estátuas de vasos e castiçais terminavam de compor a distinta sala de jantar. Entrou em outra porta em que havia pilhas de papéis, pastas, jornais. Ela encostou em uma das pilhas e todas começaram a balançar, pender para o seu lado, mas ela logo segurou e fez parar. Saiu e foi para outra porta. Este era um cômodo que possuía uma mesa de bilhar, um minibar e sofás. Quanto mais abria as portas mais ficava animada, já havia imaginado todos vivendo ali, conversando, rindo, correndo pelos corredores. “Seria uma coisa interessante de se ver...” Pensou ela. Saindo da porta olhou para a escada e rapidamente subiu.
O andar superior era uma obra prima. Havia poucas janelas e a luz vinha com mais intensidade apenas do mezanino que permitia ver o hall de entrada. A configuração deste andar seguia o requinte e a organização do andar inferior, mas este era circular e as portas eram dispostas uma ao lado da outra envolta do mezanino. Ela ouviu vozes de pessoas conversando, ficou confusa e entrou em uma das portas de onde parecia vir o barulho. Estranhamente era uma sala enorme. Logicamente não seria possível ter aquele tamanho, mas tinha, e o que havia nela era ainda mais irreal. Era uma enorme biblioteca, deveria conter milhares de livros. Havia várias mesas, cadeiras e poltronas. Logo começaram a aparecer sujeitos, um a um, se materializavam em corpo e voz. Eram homens de termo fino que falavam e fumavam e mulheres de vestido que se sentavam finamente de pernas cruzadas.  Não apenas falavam, mas discutiam, escreviam e liam livros. Um deles de forte expressão facial gesticulava e falava sem parar, alguns a sua volta ouviam e anotavam. Era uma sala muito fervorosa, a iluminação com velas dava ainda mais energia para o ambiente. Era um lugar de alegria e entusiasmo. A menina se aproximou de um dos grupos, poderia ficar a vida toda ali. Deveria ser o local onde o dono passava muito tempo... e que tempo agradável deveria ser. De repente um estalo a fez tomar consciência de que era impossível estar vendo aquilo. “Teria ela enlouquecido”, pensava. Resolveu sair do cômodo. Ao fechar a porta ainda ouvia as vozes vindas de lá. Uma porta ao lado continha uma frase (ou seria um aviso) ao lado da maçaneta: “O Tempo é o Grande Pai”. Ao entrar se deparou com uma enorme quantidade de objetos. Havia papéis de todos os tipos e tamanhos, roupas, pacotes, fotos, caixas. Algumas pilhas de objetos estavam arrumadas, outras estavam espalhadas pelo chão. A garota andou pelo lugar olhando mais atentamente. Pegou um carrinho quebrado que estava no chão. Viu uma pequena coleção de chaves, tickets de cinema, panfletos de eventos, provas, cartas, desenhos. Resolveu abrir uma caixa que estava perto. Em seu interior haviam muitas rosas envelhecidas, ela achou curioso, pois as pessoas geralmente guardam rosas vivas, porque alguém guardaria rosas destruídas, mortas, mas também a caixa não parecia ser algo de tanta importância pelo aspecto que tinha. Viu uma mesa de xadrez com várias assinaturas, talvez fossem de seus amigos, mas as letras estavam muito apagadas pelo tempo e ela não conseguia ler. Era uma sala estranha, não havia janelas ou velas ou qualquer coisa que iluminasse. No fundo da sala a garota achou uma caixa de música e ao abrir um som de piano começou a soar uma triste canção. O cenário foi se tornando mais escuro, ela sentiu frio. As paredes começaram a congelar, sua respiração foi tomando forma com a queda da temperatura. Ela foi em direção à saída, então começou a mexer no que via. Perto da porta encontrou uma caixa pequena, parecia ter sido colocada lá há pouco tempo. Em seu interior havia uma vela dentro de um vidro. Era uma peça toda ornamentada que emanava luz e calor. Ela tirou de lá na esperança de reverter o processo de esfriamento do ambiente. Levantou o vidro, a canção soo forte, uma lagrima correu de seu olho e o gelo das paredes começou a derreter e agora metade do lugar estava iluminado, ficando no escuro o fundo da sala com a caixa de música caída e outros objetos que sumiam na sombra. Saiu daquela sala, mais uma vez questionando sua sanidade mental. Nunca poderia imaginar uma casa como essa. Foi para o outro lado do círculo e entrou em outra porta. A menina não entendeu bem o que era. Havia uma cama com lençóis de cetim, alguns castiçais indicavam que a luz ali era apenas de velas. Era um lugar pequeno, reservado. Havia uma prateleira com correntes, garrafas de whisky, cigarros, e outros objetos que não soube dizer o que era. Havia um rádio de um lado... Ela pensou “já aconteceram muitas estranhas desde que cheguei aqui, não me espantaria se esse som funcionasse” e assim ela ligou. Um som de cordas metálicas e distorcidas saiu de lá, uma melodia infernal que hipnotizava, batidas rápidas, logo se viu quente, passou a mão em sua testa, estava soando. Saiu tonta de lá. Uma porta lhe chamou atenção, estava quebrada com uma grande rachadura no meio. Entrou lentamente, como se pudesse ferir com algum movimento brusco. Andou pela sala e ao fundo encontrou um grande quadro.
A menina sorriu, era como se a casa tivesse lido seu pensamento e dado a ela o que desejava: conhecer o dono da casa. Ela ficou olhando... Era um homem sentado em uma poltrona, trajava terno escuro e lembrava muito os homens da sala dos livros. Tinha cabelos longos, que estavam presos. Seus grandes olhos pareciam ver tudo, pareciam querer ver e compreender tudo e sua barba ocultava um sorriso misterioso. Era ele... só poderia ser ele. Parecia ser tão confiante, tão enigmático. Chegou perto do quadro, queria ver mais, saber mais sobre ele. Sentiu a respiração dele, o bater de seu coração. Ela arregalou os olhos, sentiu os olhos dele caírem sobre os seus. Ouviu os sons de dentro de cada sala que entrou, os homens, as mulheres, o piano, o ritmo hipnotizante, ouviu outros sons, risos, gritos, choro de bebê, de criança, de adulto, os olhos dele pareciam ver cada célula de seu corpo, conhecer cada segredo seu, como uma troca por ela estar conhecendo os seus. Ela sentiu que estava perdendo a consciência. Um grito estridente de corvo ecoo por todos os cantos. Ela não conseguia parar de olhar para ele, sentia medo e encanto, fascinada por estar ali, talvez ninguém nunca tenha entrado naquela casa, não deste jeito. Uma voz penetrante saiu de seus lábios: “O barco que sobrevive a tempestade pode navegar pelo mar da forma que quiser”. Ela balançou a cabeça hipnotizada. Um novo grito do corvo, ela se assustou, balançou a cabeça e saiu da sala. Desceu as escadas, atravessou o corredor e saiu da casa. Em sua mente vinham todas as coisas que viu misturadas com seus próprios devaneios e teorias sobre a casa e seu estranho dono. Ia embora quando parou e lembrou que havia deixado a porta aberta. Não poderia fazer isso. Então sussurrou para o hall vazio “eu voltarei”. Sentiu que queria estar ali e ele também iria querer ela ali, parecia muito sozinho naquele cômodo. Lembrou então dos perigos, quase armadilhas da casa, poderia se ferir físico e mentalmente.
A menina fechou a porta, andou até o caminho de pedras e desviou do lugar onde havia tropeçado.

sábado, 28 de abril de 2012

Coração de ferro e entranhas de bronze




Calmaria... Lentamente voltando ao pó. Lentamente.
Os ponteiros do relógio vão sessando sua frenética atividade.. Quando tempo entregue a loucura do movimento, da inquietude. Sinais compulsivos de um cardiograma, taquipineia, as entranhas se contorcendo. Reações neurovegetativas frente a fantasmas, torpes criações do inconsciente. Quanto tempo perdido. 
Em breves momentos flertava com Thanatos. Não querendo o fim, mas o silêncio, as leves ondas de uma noite de outono. Sabe-se que Hipnos é irmão de Thanatos e isso talvez explique o fato de que um seja o prelúdio do outro. O fato é que ambos, paradoxalmente, salvam aqueles que nunca cessão, aqueles cujo corpo e a mente sofrem o mesmo mal do relógio. Porém, o relógio é apenas uma máquina passiva, que assim como todos nós, está submetido ao tempo. 
Dizem que o tempo é cíclico e pendular e não seria eu alguém para contestar, mas algo deve ser apontado. É cíclico para o todo, é cíclico quando se olha a humanidade, períodos históricos, e quanto ao sujeito singular? Pode-se dizer que este, submetido ao tempo, nasce, cresce, morre, nasce de novo e o ciclo se repete? Novamente, muitos podem dizer que sim, mas as justificativas simplificariam algo por demais complexo.
O fato é que o homem surge em um momento e acaba em outro. Nada tem mais força que o tempo. Ele empurra a vida, ou poderia dizer, encurta a vida, ou melhor ainda, ele dita a vida, sua quantidade e qualidade. Quando dissemos daquele que vive na agonia - que os neurologistas chamam de Luta e Fuga - é possível ver como o tempo atua qualitativamente. Kairós, agora, é o melhor e o pior inimigo, pois o tempo passa na mesma velocidade, sempre, mas porque alguns o sentem tão rápido, tão violento e destruidor? Como alguém tão cansado poder sentir seu corpo trabalhar tão rápido? E ainda se houvesse um bom motivo.
Felizmente e infelizmente os mestres nos ensinaram que na realidade esse motivo é sempre um bom motivo, apesar do conteúdo ideacional parecer patético e banal.
Eles também nos ensinaram que Thanatos se impõe sobre Eros (como Eros também se impõe a Thanatos, também de forma cíclica e pendular). Toda a energia e o movimento para a vida, para atividade, de um lado. Do outro o desligamento, a calma, um convite à morte. Convite esse latente, talvez o manifesto é o pedido desesperado por paz, por tranquilidade. Seria muito ruim viver em uma atividade frenética constante... Muito ruim.
Estava ele de novo olhando o relógio em seu pulso, maldizendo o tempo que acelera seu corpo e seus pensamentos. Imaginava o teatro em que os deuses mitológicos atuavam, cada um seu papel, em seu ato, eu seu tempo. Pensava como todos eles, real e simbolicamente, estão submetidos à Cronos, o grande pai, a grande Lei.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

“Das Unbewußte ist das eigentlich real Psychische"



Era uma casa de loucos. Mulheres gritavam e desmaiavam, meninos vomitavam apenas por ver o sol nascer. Conversas desconexas, sentimentos trocados. Perda do sentido, da realidade. Mas afinal o que é a realidade? Ele pensava, via, ouvia, sonhava. Talvez todas essas coisas fossem reais. Inclusive toda a histeria que estava a sua volta. E se ele quisesse gritar também? Por motivos diferentes as pessoas fazem as mesmíssimas coisas.
Assim os dias passavam. A roupa escondendo as cicatrizes da pele e a pele escondendo as cicatrizes da alma. Todos as têm e ele sabia disso. Talvez por isso fascinava-se tanto, procurava tanto ver e entender cada ferida profunda, mesmo as mais bizarras. “O mundo está louco” dizem as pessoas por ai afora. E se a realidade fosse um grande delírio histérico? Seriam todos histéricos? Claro que pensava isso para aliviar sua penitência, pensava por projetar sua loucura no mundo, pensava porque este sempre fora o modo pelo qual concebia a realidade.
Ai está. A tal realidade... “Que foi?”. “Nada...” ele respondia. Mas uma vez havia transposto aquela fronteira entre o mundo compartilhado e o seu próprio, ou talvez pudesse dizer a realidade e a fantasia, mas não acabava de dizer que a “fantasia” fazia parte da “realidade”...?
Assim ele continuava.