Uma jovem
menina andava pelo campo, uma área cercada por densas árvores. Era uma tarde de
inverno e o ar estava silencioso. Ela caminhava distraída, quando escutou o
grito de um pássaro vindo de perto. Ela correu em direção ao som, tirou alguns
arbustos do caminho e logo encontrou a ave, um corvo com penetrantes olhos
vermelhos que a observavam, a observavam profundamente. Porém não foi o corvo
que mais lhe chamou atenção, atrás dele havia uma casa... A menina ficou
paralisada, uma mistura de medo e curiosidade. Ela deu dois passos a frente, titubeou
por um momento, olhou para traz buscando retornar ao corvo, mas ele não estava
mais lá.
Era uma antiga
mansão, devia estar abandonada há muito anos. A tinta de suas paredes estava
gasta, em alguns locais se viam os tijolos. O grande telhado parecia cobrir
mais do que apenas a casa. Para enxergar seu topo pontiagudo a menina precisou
erguer bastante a cabeça. Em sua frente havia uma grande porta com detalhes
entalhados, em cada lado colunas se erguiam para um segundo andar. Em sua
frente degraus de madeira vermelha construíam uma escada. Duas janelas já acinzentadas
pela poeira do tempo construíam a fachada da casa. A menina se aproximou. No
chão um caminho de pedras, ela tropeçou e ralou a perna. Um vento forte passou
balançando os cabelos da jovem para o lado oeste da casa e um estranho aroma de
flores tomava o ar. Ela seguiu a direção e viu o que um dia deveria ter sido o
jardim da casa. A grama havia crescido livremente e muitas plantas aproveitaram
para se instalar ali. Viam-se algumas estátuas quebradas e um círculo de pedra
que lembrava uma fonte. Bem no centro estava uma árvore que havia sobrevivido
ao abandono da propriedade. Seu longo e marcado tronco revelava seus muitos anos
ali. Compridos galhos cobertos de folhas amareladas pendiam para baixo, raízes
saltavam do chão, mas ainda era majestosa, tinha uma sublime beleza melancólica. A árvore
ficava de frente para a varanda da casa, uma área grande, também com duas
colunas de mármore nas extremidades. Um banco de madeira estava arrumado de
modo que quem sentasse ali teria uma bela visão do jardim. A menina andou pelas
ruínas e ficou imaginando quem teria morado ali, como seria estar naquele
ambiente com vida. Sua curiosidade aumentava, ela teve vontade de ver o outro
lado da casa. Passando pelos fundos viu no alto uma janela circular que deveria
dar para o sótão. Seguiu por um caminho envolto por terra, talvez um dia tivesse
sido preenchido por rosas, ou narcisos, ou jasmins... Um buraco! Ela desviou
rapidamente de um buraco que havia no caminho. Talvez estivessem escavando por
algum motivo. Logo alcançou o lado leste. Havia várias árvores de tamanhos
pequenos, pareciam ter frutos, mas a menina não chegou perto para ver. Deu a
volta na casa e chegou novamente à entrada principal.
O interesse
havia superado o medo e uma excitação agora a motivava. Chegou à porta, virou o
trinco e a porta se abriu. Era pesada e ela teve dificuldade para empurrá-la. Estava
escuro e havia muita poeira e folhas no chão. Receou, mas seguiu em frente. Era
um grande hall e em cada canto havia uma janela. Abri-las foi o modo que
encontrou para trazer luz àquele lugar tão escuro e belo. Incrivelmente a
claridade vinda de fora deu um toque de vida a casa, ela pode distinguir
móveis, quadros, corredores, portas. Tudo era muito antigo. O proprietário
deveria ser um amante do estilo vitoriano. O tipo dos móveis e sua configuração
lembravam casas antigas, mais antigas do que a idade da casa. “Talvez aqui
vivesse um lord!” pensou a menina, divagando com um homem de luvas, cartola e
bengala saindo da casa e pegando um ônibus. Soltou uma risada que ecoo pelo cômodo.
Sentiu um arrepio... ainda havia ali algo que lhe causava certo medo. Andou um
pouco e chegou a um corredor. Nele havia muitas portas, sistematicamente colocadas
ao lado da outra e de frente uma para a outra. No fim do corredor estava uma
escada forrada por veludo vermelho escuro.
Resolveu
investigar. A primeira porta dava para uma cozinha. Estava quase vazia, salvo
uma pia e um armário com pratos. Duas cadeiras estavam caídas no chão. Rapidamente
saiu e entrou em outra porta. Ali estava uma mesa comprida de madeira. Quadros
ornavam as paredes, um deles muito curioso representava um barco em meio ao
oceano. Estátuas de vasos e castiçais terminavam de compor a distinta sala de
jantar. Entrou em outra porta em que havia pilhas de papéis, pastas, jornais.
Ela encostou em uma das pilhas e todas começaram a balançar, pender para o seu
lado, mas ela logo segurou e fez parar. Saiu e foi para outra porta. Este era
um cômodo que possuía uma mesa de bilhar, um minibar e sofás. Quanto mais abria
as portas mais ficava animada, já havia imaginado todos vivendo ali,
conversando, rindo, correndo pelos corredores. “Seria uma coisa interessante de
se ver...” Pensou ela. Saindo da porta olhou para a escada e rapidamente subiu.
O andar superior
era uma obra prima. Havia poucas janelas e a luz vinha com mais intensidade
apenas do mezanino que permitia ver o hall de entrada. A configuração deste
andar seguia o requinte e a organização do andar inferior, mas este era
circular e as portas eram dispostas uma ao lado da outra envolta do mezanino. Ela
ouviu vozes de pessoas conversando, ficou confusa e entrou em uma das portas de
onde parecia vir o barulho. Estranhamente era uma sala enorme. Logicamente não
seria possível ter aquele tamanho, mas tinha, e o que havia nela era ainda mais
irreal. Era uma enorme biblioteca, deveria conter milhares de livros. Havia
várias mesas, cadeiras e poltronas. Logo começaram a aparecer sujeitos, um a
um, se materializavam em corpo e voz. Eram homens de termo fino que falavam e
fumavam e mulheres de vestido que se sentavam finamente de pernas cruzadas. Não apenas falavam, mas discutiam, escreviam e
liam livros. Um deles de forte expressão facial gesticulava e falava sem parar,
alguns a sua volta ouviam e anotavam. Era uma sala muito fervorosa, a
iluminação com velas dava ainda mais energia para o ambiente. Era um lugar de
alegria e entusiasmo. A menina se aproximou de um dos grupos, poderia ficar a
vida toda ali. Deveria ser o local onde o dono passava muito tempo... e que
tempo agradável deveria ser. De repente um estalo a fez tomar consciência de
que era impossível estar vendo aquilo. “Teria ela enlouquecido”, pensava.
Resolveu sair do cômodo. Ao fechar a porta ainda ouvia as vozes vindas de lá. Uma
porta ao lado continha uma frase (ou seria um aviso) ao lado da maçaneta: “O
Tempo é o Grande Pai”. Ao entrar se deparou com uma enorme quantidade de
objetos. Havia papéis de todos os tipos e tamanhos, roupas, pacotes, fotos,
caixas. Algumas pilhas de objetos estavam arrumadas, outras estavam espalhadas
pelo chão. A garota andou pelo lugar olhando mais atentamente. Pegou um
carrinho quebrado que estava no chão. Viu uma pequena coleção de chaves, tickets
de cinema, panfletos de eventos, provas, cartas, desenhos. Resolveu abrir uma
caixa que estava perto. Em seu interior haviam muitas rosas envelhecidas, ela
achou curioso, pois as pessoas geralmente guardam rosas vivas, porque alguém guardaria
rosas destruídas, mortas, mas também a caixa não parecia ser algo de tanta
importância pelo aspecto que tinha. Viu uma mesa de xadrez com várias
assinaturas, talvez fossem de seus amigos, mas as letras estavam muito apagadas
pelo tempo e ela não conseguia ler. Era uma sala estranha, não havia janelas ou
velas ou qualquer coisa que iluminasse. No fundo da sala a garota achou uma
caixa de música e ao abrir um som de piano começou a soar uma triste canção. O
cenário foi se tornando mais escuro, ela sentiu frio. As paredes começaram a
congelar, sua respiração foi tomando forma com a queda da temperatura. Ela foi
em direção à saída, então começou a mexer no que via. Perto da porta encontrou uma
caixa pequena, parecia ter sido colocada lá há pouco tempo. Em seu interior
havia uma vela dentro de um vidro. Era uma peça toda ornamentada que emanava
luz e calor. Ela tirou de lá na esperança de reverter o processo de esfriamento
do ambiente. Levantou o vidro, a canção soo forte, uma lagrima correu de seu
olho e o gelo das paredes começou a derreter e agora metade do lugar estava
iluminado, ficando no escuro o fundo da sala com a caixa de música caída e
outros objetos que sumiam na sombra. Saiu daquela sala, mais uma vez questionando
sua sanidade mental. Nunca poderia imaginar uma casa como essa. Foi para o
outro lado do círculo e entrou em outra porta. A menina não entendeu bem o que
era. Havia uma cama com lençóis de cetim, alguns castiçais indicavam que a luz
ali era apenas de velas. Era um lugar pequeno, reservado. Havia uma prateleira
com correntes, garrafas de whisky, cigarros, e outros objetos que não soube
dizer o que era. Havia um rádio de um lado... Ela pensou “já aconteceram muitas
estranhas desde que cheguei aqui, não me espantaria se esse som funcionasse” e
assim ela ligou. Um som de cordas metálicas e distorcidas saiu de lá, uma
melodia infernal que hipnotizava, batidas rápidas, logo se viu quente, passou a
mão em sua testa, estava soando. Saiu tonta de lá. Uma porta lhe chamou
atenção, estava quebrada com uma grande rachadura no meio. Entrou lentamente,
como se pudesse ferir com algum movimento brusco. Andou pela sala e ao fundo
encontrou um grande quadro.
A menina
sorriu, era como se a casa tivesse lido seu pensamento e dado a ela o que
desejava: conhecer o dono da casa. Ela ficou olhando... Era um homem sentado em
uma poltrona, trajava terno escuro e lembrava muito os homens da sala dos
livros. Tinha cabelos longos, que estavam presos. Seus grandes olhos pareciam
ver tudo, pareciam querer ver e compreender tudo e sua barba ocultava um
sorriso misterioso. Era ele... só poderia ser ele. Parecia ser tão confiante,
tão enigmático. Chegou perto do quadro, queria ver mais, saber mais sobre ele. Sentiu
a respiração dele, o bater de seu coração. Ela arregalou os olhos, sentiu os
olhos dele caírem sobre os seus. Ouviu os sons de dentro de cada sala que
entrou, os homens, as mulheres, o piano, o ritmo hipnotizante, ouviu outros
sons, risos, gritos, choro de bebê, de criança, de adulto, os olhos dele
pareciam ver cada célula de seu corpo, conhecer cada segredo seu, como uma
troca por ela estar conhecendo os seus. Ela sentiu que estava perdendo a consciência.
Um grito estridente de corvo ecoo por todos os cantos. Ela não conseguia parar
de olhar para ele, sentia medo e encanto, fascinada por estar ali, talvez ninguém
nunca tenha entrado naquela casa, não deste jeito. Uma voz penetrante saiu de
seus lábios: “O barco que sobrevive a tempestade pode navegar pelo mar da forma
que quiser”. Ela balançou a cabeça hipnotizada. Um novo grito do corvo, ela se
assustou, balançou a cabeça e saiu da sala. Desceu as escadas, atravessou o
corredor e saiu da casa. Em sua mente vinham todas as coisas que viu misturadas
com seus próprios devaneios e teorias sobre a casa e seu estranho dono. Ia
embora quando parou e lembrou que havia deixado a porta aberta. Não poderia
fazer isso. Então sussurrou para o hall vazio “eu voltarei”. Sentiu que queria
estar ali e ele também iria querer ela ali, parecia muito sozinho naquele cômodo.
Lembrou então dos perigos, quase armadilhas da casa, poderia se ferir físico e mentalmente.
A menina
fechou a porta, andou até o caminho de pedras e desviou do lugar onde havia tropeçado.
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