sábado, 27 de agosto de 2022

É como se não fosse

 


-...real.

-É, mas como se não fosse?

-Isso. Como se o que eu quisesse não fosse, sei lá, importante. Como se fosse sempre um capricho de criança.

-Capricho... Logo você que disse tantas vezes aqui ser alguém caprichoso...

-Sim! Sim! Caprichoso! Nossa...

(silêncio)

-Mas quando eu capricho as coisas parecem reais. Digo, eu posso ser caprichoso escrevendo um texto no trabalho e isso parece realmente ser... Qual é a palavra? Importante! Só que quando se trata da minha vontade, não sei, parece sempre... bobo?

(silêncio)

-É como se fosse besteira... Por exemplo: se eu preciso escolher algo para comer, o fato de ser uma escolha minha... a sensação é estranha. Sempre que eu me vejo no lugar de exercer minha vontade pareço bobo, fico envergonhado de...

-De...?

-Ser...

-Ser... Como se não fosse... O que tem aqui?

-Acho que... parece uma história inventada, uma brincadeira com tempos verbais, uma história como essas que eu escrevo. E se eu escrevo não é real. É real, mas é como se não fosse, entende?

(silêncio)

-Explico: se o presente for uma invenção de algo escrito antes, não é, mas é como se fosse. É uma comparação com algo criado, não é real...

-Real?

-Genuinamente real.

-Escrito antes? Não entendo.

-Isso, na minha cabeça, aquilo foi escrito, pensado, imaginado, é uma ficção! Isso, uma ficção elaborada por mim! Então, quando eu chego no restaurante, é como se eu só encenasse minha história. Não sou eu pedindo, no presente, sou eu encenando na minha peça. Que vergonha, que besteira meu pedido!

-Hum. O que você esperava?

-Nem vem! Eu sei para onde você tá apontando, eu já te conheço! Não é esse o ponto. Veja: é sobre a minha experiência de sujeito, a forma como existo nesse mundo que me parece algo extremamente bobo. Não são todas as coisas, é o que eu quero, o que eu faço fora do cronograma do dia-a-dia. Os extras! É como se eles fossem banais demais, talvez nem dignos de serem feitos.

-Seu desejo não é, mas é como se fosse. Seu desejo é “bobo”. O que você tá fazendo com seu desejo?

-Como assim...? Diminuindo?

(silêncio)

-Não entendi.

(silêncio)

-Se meu desejo não vale tanto, eu não preciso levar ele tão a sério. É como eles diziam “você tá só inventando moda”, só o trabalho é sério, só o adulto é sério (risos). Mas como posso me levar a sério?! É como naquela frase da música “I’m just a boy playing the suicide king”. Então você quer que eu pare de usar essa lógica idiota que usei a vida inteira porque ela é uma desculpa para não bancar o que eu desejo?

-Que eu quero?

-Eu quero, não, é como se eu quise...

-(interrompendo) Vamos ficar por aqui.

 

Relato 76

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