segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Pergunta retórica

"Isso é estar feliz?" Rabiscava incessantemente estas palavras em seu caderno de bolso. Em meio a tantos registros detalhados e esquemas mentais essa página parecia caótica, delirante. Olhou pela janela, mas o véu da noite cobria tudo que tocava, não fosse por um feixe de luz que piscava ao longe. Se concentrou no estímulo apertando os olhos e franzindo a testa mais do que era preciso. De repente seus olhos percorreram quilômetros, atravessaram a grama verde e o rio que cruzava a vila. Pôde ver uma lamparina acessa do lado de fora de uma casa simples. Ao seu lado um senhor de longas barbas se inclinava para frente e para trás em movimentos repetidos numa cadeira de balanço. Seu coração batia lento, podia escutar, assim como a chama da vela que farfalhava ao sabor do vento. 

Essa sensação... Era incrível poder ver e ouvir desta forma. Lembrou dos anos passados quando ainda era humano, quando ainda precisava usar aqueles óculos redondos por necessidade e não por descrição. Talvez a visão do velho tenha lhe deixado nostálgico, quase lúgubre, o que parecia quase contraditório considerando o conteúdo da página do caderno aberta ao seu lado. Que paradoxal também lhe parecia o tempo daquela perspectiva... Desviou a atenção da luz e fechou os olhos. Ouviu som de arpa, passos apressados, colunas jônicas, um lenço preto deixado propositalmente sobre o móvel da sala. Se deu conta que até seu pensamento parecia aprimorado ou talvez sempre o fosse, mas não o tomava com clareza. 

Abriu os olhos e se levantou. Atravessou o corredor escuro e se dirigiu até a saída da casa. Ventava muito, mas nada que o incomodasse ou o desviasse da mesma pergunta que o colocara neste estado inquieto. Voltou a acompanhar a única pessoa que lhe fazia companhia naquela noite outonal. Desta nova posição podia ver mais detalhes. O senhor usava pijamas, parecendo bastante confortável. Sua expressão límpida poderia facilmente ser confundida com um cochilo, mas não havia como se enganar: o idoso também contemplava algo ou talvez esperasse por algo. Se perguntou o que pensaria alguém cujo fio da vida não passava de um findado novelo de lã. Por tantas vezes se sentiu assim, não por considerar que seu novelo estava prestes a acabar, mas por achar seu novelo impróprio ao tear a ponto de querer defenestra-lo a qualquer momento. Algo havia mudado... 

Depois daquela viagem para o oriente, depois do contato com aqueles mercadores, depois de ver a roda da carroça tão irreparavelmente quebrada, depois de visitar a Grande Biblioteca, depois... Seu fluxo de pensamento fora interrompido, pois havia se dado conta de que se passaram anos desde sua decisão de deixar a França. Uma brisa passou por seus cabelos e decidiu dar mais uma olhada no velho. Uma cicatriz se destacava em seu braço esquerdo. Talvez seja um otomano desertor, pensou. O tamanho e  o aspecto eram condizentes com perfuração de lâmina, uma perfuração antiga. Levou a mão ao pescoço e pressionou dois pequenos furos, quase imperceptíveis. Depois daquela noite - retomou o fluxo associativo de seu pensamento -, depois de provar seu sangue, depois de sentir o dela se misturar com o meu, depois de assumir a dupla jornada de vendedor e informante... Quanto havia acontecido nestes últimos anos... De repente achou sua vida interessante, digna de nota, talvez de uma história contada. Lembrou da viagem que fez a Paris quando era criança e pôde rememorar como se sentiu pequeno diante de Notre Dame: apenas um menino que tropeçava nas ruas de ladrilho com tantos sonhos guardados... O velho pareceu tentar se levantar, mas logo cambaleou de volta ao assento. A vela da lamparina mal podia se sustentar e, num movimento quase involuntário, estava ele ao lado de seu companheiro. 

Sem apresentações olhou para o senhor de maneira gentil e lhe perguntou:
-Isso é estar feliz? 
-Ah meu jovem... Começou ele a responder, mas parando por um momento antes de prosseguir, como se tomasse fôlego. Que pergunta mais ingênua. Não percebe quão retóricos podemos nos tornar diante da vida?

Não entendeu o sentido daquelas palavras, mas não quis interromper. Apenas ouviu:

-...ou quem sabe diante da morte. Ele olhou para a lamparina que agora iluminava quase nada e, sem lhe dirigir o olhar, prosseguiu. Acha que alcançou o que deseja? Ou acha essa também uma pergunta retórica?

O velho riu um riso abafado e cansado. Se recostou na cadeira e mirou o horizonte que pouco distinguia o céu da terra. Então, antes da vela terminar, Dimitri escutou as últimas batidas daquele coração. Parou por alguns instantes, reflexivo e ajeitou os óculos no rosto, até lembrar que os deixara ao lado do caderno de bolso, tendo apenas tocado a testa com o dedo indicador. Se sentou no chão, ao lado do velho, e olhou na mesma direção de sua derradeira visão. Enxergou a vasta planície e o caminho até Brasov. Viu uma revoada de pássaros e os primeiros indícios do sol que viria logo a apontar. Voltou para a casa, pegou um rolo de papel e tinta e redigiu uma carta relatando aquela noite. Este não era um informativo, era uma epístola a uma interlocutora estimada e carregava muito de seu sentimento. Havia adquirido este hábito de compartilhar, gostava de pensar que ela o lia como a um livro. Gostava da sensação que isso lhe trazia.

Sorriu enquanto escrevia as últimas linhas: sinto sua falta, draga mea. Dobrou o manuscrito e o colocou junto ao caderno de bolso. Fechou-o sem pestanejar e repetiu pra si mesmo: pergunta retórica?

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