terça-feira, 22 de abril de 2025

A língua dos anjos

Era a quinta vez que ouvia aquele disco. A agulha já arranhava a superfície.

Em círculos, girando, se repetindo. Não sabia quantas horas havia se passado.

Estava deitado naquele sofá enquanto acompanhava a letra, os olhos fixos no teto.

Entendia bem o francês, mas entendia mais o que aquelas palavras o faziam sentir.

Era um estudioso de Saussure, achava que a linguagem era como uma uma ponte.

Pontes construídas para ligar pessoas, para fazê-las acessar o incompreensível.

Lembrava das palavras mágicas, as que podiam fazer sumir e aparecer, destruir e criar.

"Ainda que eu falasse a língua dos anjos e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine"

O capítulo 13 lhe veio a mente, imaginou anjos e serafins no teto que se tornara um afresco.

Belos, retilíneos, apolíneos, impecáveis, olhando-o com seus olhos ternos.

"O amor nunca perece; mas as profecias desaparecerão, as línguas cessarão..."

A citação foi interrompida por ele próprio quando, inexplicavelmente, sentiu sufocar.

Ar. Era tudo o que queria naquele momento e ele precisava se mover depressa.

Abriu a porta do apartamento e saiu em disparada, mas o que encontrou foi a lua.

De repente o silêncio súbito deixado pela ausência da música vinda da vitrola.

Uma calmaria oposta aos batimentos de seu coração que não podia ser ouvido.

Estava ali, de pé, dessa vez contemplando o afresco que a natureza produzia no céu.

Nuvens passando, cobrindo e descortinando a lua, formas densas e outras nem tanto.

Pássaros, um navio, uma palmeira, olhos, tonéis, um unicórnio, pegadas de um urso.

Não era só a natureza, devia ser algo mais. Imaginou alguém criando aquelas nuvens.

Uma menina, talvez uma menina escultora de nuvens, de sonhos ou de delírios.

Riu pensando que, se estivesse padecendo da dementia paranoide, sabia a autoria de seus devaneios.

Nesse momento, da lua se descolou um coelho que saltitou sobre cada nuvem.

Estendeu a mão em direção ao céu, como se tentasse alcançá-lo com a ponta dos dedos.

Só então percebeu como a noite estava estrelada, compondo a peça final do afresco.

Radiante e celestial, um encontro de Vincent, Sigmund e Michelangelo.

Talvez realmente estivesse avistando o paraíso. Por sorte sabia falar a língua dos anjos.

Um comentário: