terça-feira, 22 de abril de 2025

A língua dos anjos

Era a quinta vez que ouvia aquele disco. A agulha já arranhava a superfície.

Em círculos, girando, se repetindo. Não sabia quantas horas havia se passado.

Estava deitado naquele sofá enquanto acompanhava a letra, os olhos fixos no teto.

Entendia bem o francês, mas entendia mais o que aquelas palavras o faziam sentir.

Era um estudioso de Saussure, achava que a linguagem era como uma uma ponte.

Pontes construídas para ligar pessoas, para fazê-las acessar o incompreensível.

Lembrava das palavras mágicas, as que podiam fazer sumir e aparecer, destruir e criar.

"Ainda que eu falasse a língua dos anjos e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine"

O capítulo 13 lhe veio a mente, imaginou anjos e serafins no teto que se tornara um afresco.

Belos, retilíneos, apolíneos, impecáveis, olhando-o com seus olhos ternos.

"O amor nunca perece; mas as profecias desaparecerão, as línguas cessarão..."

A citação foi interrompida por ele próprio quando, inexplicavelmente, sentiu sufocar.

Ar. Era tudo o que queria naquele momento e ele precisava se mover depressa.

Abriu a porta do apartamento e saiu em disparada, mas o que encontrou foi a lua.

De repente o silêncio súbito deixado pela ausência da música vinda da vitrola.

Uma calmaria oposta aos batimentos de seu coração que não podia ser ouvido.

Estava ali, de pé, dessa vez contemplando o afresco que a natureza produzia no céu.

Nuvens passando, cobrindo e descortinando a lua, formas densas e outras nem tanto.

Pássaros, um navio, uma palmeira, olhos, tonéis, um unicórnio, pegadas de um urso.

Não era só a natureza, devia ser algo mais. Imaginou alguém criando aquelas nuvens.

Uma menina, talvez uma menina escultora de nuvens, de sonhos ou de delírios.

Riu pensando que, se estivesse padecendo da dementia paranoide, sabia a autoria de seus devaneios.

Nesse momento, da lua se descolou um coelho que saltitou sobre cada nuvem.

Estendeu a mão em direção ao céu, como se tentasse alcançá-lo com a ponta dos dedos.

Só então percebeu como a noite estava estrelada, compondo a peça final do afresco.

Radiante e celestial, um encontro de Vincent, Sigmund e Michelangelo.

Talvez realmente estivesse avistando o paraíso. Por sorte sabia falar a língua dos anjos.

domingo, 6 de abril de 2025

Sobre aquela rosa vermelha que conheceu


O jovem príncipe deixou os portões do castelo usando seu habitual traje de passeio. As reforçadas botas marrons, a calça amassada, a camisa de gola bufante e o alinhado colete de cetim. Indumentária pouco usual para um pequenino. Não, era mais do que não usual, era contraditória: vestes tão velhas para um jovem futuro rei. Contudo, isso pouco importava naquela tarde primaveril, o castelo ficara pra trás enquanto marchava rumo ao inesperado.

O mundo era grande a sua volta, grande demais para seus pés pequenos, mas sentia que a bravura em seu peito era maior. Puxou as mangas da camisa e seguiu decidido. Seu objetivo era simplesmente conhecer tudo o que pudesse. Estava farto da vida real, de suas regalias, pompas e compromissos, sentia de alguma forma que queria mais. Felizmente, permissões para deixar o castelo todas as tardes não foram difíceis de conseguir, afinal, adquirir conhecimento fazia parte de sua preparação para o trono. Contudo, em troca prometeu ser cuidadoso e honrar o horário de seus compromissos. Assim, nesta tarde, como nas demais, andou seguindo seu instinto. 

Não era um daqueles dias radiantes onde os animais dão as caras e as abelhas ziguezagueiam pra lá e pra cá. Era um dia comum, cortado por um vento lento e contínuo que eriçava as folhas da grama quando passava. O príncipe desviava de um galho no chão quando se deparou com uma árvore antiga cujo tronco se projetava tão alto que parecia tocar o céu. Há um metro do chão, em sua casca, se encontrava um buraco, talvez uma toca, uma marca do tempo ou das intempéries. Tudo isso passava por sua mente inquieta que tudo registrava e que lhe instigou a meter a cara e gritar um saudoso "olá". O som ecoo por toda a extensão do tronco, fazendo-o vibrar. Alguns animais pareceram se assustar na copa e fugiram. Folhas caíram, inclusive, sob a cabeça do pequeno, enfeitando seus negros cabelos encaracolados. Ele também havia se assustado com a força de sua voz e o incomodo de perturbar a harmonia daqueles seres o afetou. Procurou se recompor limpando as vestes e tirando as folhas da cabeça, olhou uma última vez para a árvore e prosseguiu de onde havia parado. 

Seus passos eram vacilantes e seus pensamentos intensos. Achou sua curiosidade perigosa, não para si, mas para os outros. Não temia que sua sede pela descoberta o fizesse cair de qualquer precipício, mas que empurrasse alguém para um. Isso! Seus motivos eram nobres, como os de um rei! Prezava pelo cuidado e proteção daqueles cujos muros do feudo eram abrigados. Deveria proteger a todos, inclusive de suas próprias decisões! Por este motivo deveria ser justo e sagaz, compreensivo e respeitoso. Estufou o peito e sentiu o ouro cobrir seu coração de nobreza, afinal, estava mais próximo de seu grande objetivo que era se tornar... Ele próprio havia se interrompido, pois ele próprio havia se tapeado com as histórias que imaginaram para ele, com o papel que a ele havia sido designado. Chacoalhou a cabeça e repetiu em voz alta: "meu grande objetivo é conhecer tudo que eu puder! Eu irei conhecer cada cor, cada sabor e cada aroma. Vou desvendar os mistérios da vida e da morte, talvez até encontre o elixir da vida eterna!" Sentiu o ouro devolver o lugar do vermelho que preenchia seu coração e foi ao final de seu monólogo que justamente algo vermelho chamou sua atenção.

Do que já havia visto até aquele momento de sua vida, pouco tinha atraído tanto seu olhar. O jovem príncipe se aproximou das margens daquele lago que cortava a floresta e se abaixou para ver de perto. Era uma rosa de frondosas pétalas vermelhas. Seu tom era intenso e realçado por um brilho de beleza hipnótica. Talvez fosse o efeito visual do orvalho ou talvez aquela fosse uma rosa mágica. Resolveu se sentar a frente dela para observar melhor. Foram poucos minutos para que a observação se tornasse admiração e se passaram horas desde que enunciara com tanta determinação seu propósito. Estava tarde e ouviu ao longe o sino soar seis badalas: o fim da jornada havia chegado ao fim, mas um novo dia nasceria.

Dia após dia ele voltou para ver a rosa. Já havia decorado os padrões de suas pétalas, a largura de suas folhas e a espessura de seus espinhos. Passava horas debruçado com as mãos apoiadas no rosto admirando a rosa e não foi necessário mais do que uma semana para que a admiração se tornasse amor.  Começou a trazer papéis e tinta, com os quais fazia desenhos e extensas descrições. Arriscou ainda alguns versos tímidos. Imaginava que a rosa ouvia as batidas de seu coração, como se escutasse tambores ecoando longe na floresta. Por sua vez, pensava que o coração dela própria também batia forte como as badaladas de um sino. Pulsando forte. Um sino... um sino... Naquele dia havia perdido a hora. Pior, já não era mais dia, era noite e temia pelo que poderia acontecer.

Cinco dias se passaram para que o príncipe pudesse voltar a ver a rosa. Em cada um deles esperava pelo momento em que poderia sair novamente, vê-la novamente. Nesta tarde, suas vestes estavam menos engomadas do que de costume e parecia mais ofegante e preocupado. Fez o caminho habitual e logo se abaixou para encontrar aquela que ocupava seus pensamentos. Lá estava, em toda sua beleza, exalando o mais doce aroma a sua volta. Entretanto, mesmo diante dela, as feições do rosto do pequenino estavam tristes, quase nostálgicas - sentimentos tão velhos para alguém tão jovem. Parecia ter pressa, ao mesmo tempo que uma inquietação revelava um desejo contido de dizer algo. Chegou mais perto da rosa e reuniu todo ar que podia em seus pulmões: "partirei amanhã, ao nascer do sol, uma viagem para conhecer a extensão de nossas terras... devo ser acompanhado, orientado... disseram que minhas explorações são infantis e perigosas...". Neste momento reuniu mais um pouco de ar, dessa vez para conter as lágrimas que se misturavam às palavras: "queria que fosse comigo, mas não posso te tirar daqui, não posso feri-la...". Fechou os olhos e compreendeu algo muito mais nobre que os deveres reais, algo que marcaria toda sua vida, e assim anunciou para si mesmo em voz baixa: "devo cuidar de quem amo, protegendo inclusive de minhas próprias ações". Se aproximou ainda mais da rosa e sentiu seus lábios tocarem aquelas aveludadas pétalas carmesins. Beijou-a durante a eternidade de um instante, tão longínquo quanto sua memória, preservado por décadas em sua mente, tão vivo e tão real quanto fora um dia.

O castelo estava cheio naquela noite, pois um baile anunciava a chegada da primavera. O momento era de celebração e todos esperavam uma colheita frutífera naquele ano. Aqui e ali rostos sorriam e corpos dançavam. Taças de vinho eram erguidas e risadas ecoavam pelo salão. O rei então se juntou aos convidados usando sua habitual camisa de gola bufante e o alinhado colete de cetim. Seus longos cabelos negros encaracolados estavam presos em uma fita. Muitos o cumprimentaram com reverências e acenos, mas fora uma figura há alguns metros adiante que havia lhe chamado a atenção: usava um delicado vestido que combinava perfeitamente com seus cabelos ruivos. A mulher se aproximou lentamente quando seus olhos de lince encontraram os do rei. Neste instante hipnótico, eterno como o próprio tempo, seus corações bateram fortes e, num gesto quase involuntário, o rei lhe estendeu a mão, convidando-a para dançar. Nem mesmo por um segundo deixaram de se olhar e seus movimentos possuíam a sintonia de uma intimidade de outrora, apaixonadamente conhecida. Assim, dançaram por horas, meias, quartos... Tão rítmico quanto um relógio, tão raro quanto o passado e tão vivo quanto o presente. O rei fechou os olhos e pensou "não se trata do que acontece, mas de quando acontece". 

sábado, 11 de janeiro de 2025

A última viagem de Dimitri

O sol brilhava forte naquele acampamento cigano. Dimitri consultou seu relógio de bolso e calculou quantas horas restavam até a hora de sua partida. Não havia pressa, seria uma viagem curta e objetiva: encontrar aquele que havia lhe prometido uma boa quantia por uma peça otomana que conseguira por meios que não precisam ser explicados. Dimitri sempre demonstrou aptidão para as vendas, no acampamento alguns chegavam a chamá-lo de “língua de prata”, ele tinha seus meios.

Secou o suor da testa e foi conferir a carroça que ficava parada na frente de sua casa. Algumas crianças brincavam na terra, saltitando e bradando gritos enquanto fingiam lutar na batalha imaginária que travavam ao imitar os adultos. Dimitri sorriu enquanto os observava, pensou que ao menos para alguma coisa aquela guerra servia. Seus dois cavalos negros o esperavam, alimentados e descansados. Acariciou a crina daquele que estava mais perto, que retribuiu encostando a cabeça em seu peito. O gesto o surpreendeu, era como se o animal sentisse algo, se preocupasse com algo. Checou as travas, o assento e as rodas. Estas sempre foram sua maior preocupação. Jamais abandonaria sua carroça e a sensação de não poder retornar o apavorava. Deu dois tapas na ornada madeira da carroça, como quem se despede de um velho amigo e se dirigiu a tenda onde as refeições principais eram feitas.

O cheiro da sopa logo encontrou seu olfato e rapidamente Dimitri se serviu de uma tigela. O clima era amistoso, havia conversas aqui e ali e o senhor que servia a sopa cumprimentava cada um com um largo sorriso.

– O de sempre, meu rapaz?

– Sim... Respondeu ele reticente. S'il te plait.

Não era preciso conhecê-lo profundamente para saber que andava com menos energia do que antes. Nunca fora alguém festivo, jamais tocou em um instrumento que não fosse por propósitos comerciais e, nas rodas de história, era quem menos se ouvia. No entanto, era quando estendia o tapete ao redor da carroça que a magia acontecia. Se transformava ao anunciar orgulhosamente “as maravilhas do mundo”, como costumava chamar. Uma esquisitice mais intrigante que a outra e toda sorte de utilitários domésticos. Às vezes até se metia a vender temperos e há quem acredite que Dimitri realmente era dotado de elevados conhecimentos culinários – nunca saberemos. Acontece que há meses suas viagens haviam se tornado mais longas e muitos se perguntavam se os negócios teriam falido, pois havia parado de fazer suas famosas exposições de venda.

Estava na metade da tigela de sopa quando uma moça de cabelos ondulados se sentou junto à mesa. Ileana era a pessoa mais próxima a Dimitri e fora quem o acolheu na noite tempestuosa em que chegou ao acampamento com sua carroça quase completamente destruída. Ela segurou sua mão e disse de maneira carinhosa:

– Querido, esta noite vamos nos reunir para discutir o que fazer. O conflito se aproxima cada vez mais e temo pela paz de nossas crianças.

– Eu entendo sua preocupação, Ileana, mas receio ser algo inevitável. Respondeu enquanto engoliu seco a colherada de sopa. Eu vi movimentações de soldados por toda a região, é só questão de tempo até alguém aparecer aqui e nos envolver nessa guerra.

– Nós temos que agir! Sua voz não era ríspida, era desespero o que sentia e Dimitri sabia bem disso.

– E nós iremos. Tenho coletado livros, mapas e documentos. Qualquer coisa que possa nos dar informação sobre aqueles que nos ameaçam e esta noite vou conseguir uma boa quantia de ouro. Ele fez um sinal para que Ileana se aproximasse e assim ela o fez. Esta quantia será suficiente para nos manter em caso de fuga e nos salvaguardar em caso de barganha.

– Dimitri, você se arrisca... Ela apertou sua mão e prosseguiu reticente. Talvez não devesse... Ileana parou um instante, fechou os olhos e respirou, como se estivesse se preparando para algo. Eu tive um sonho na noite passada. Sua carroça estava vazia no centro do acampamento, a porta semiaberta e de dentro dela vertiam rubis. Na frente não havia cavalos, mas dois grandes e sombrios corvos que bicavam o solo. Fique, querido, precisamos de cada um de nós aqui.

– Vocês me acolheram quando eu mais precisei e são o mais perto que tenho de uma família. Não posso deixar escapar uma grande oportunidade quando vejo uma. Não neste momento. Não arriscaria... Havia se interrompido ao olhar em volta. Fitou o rosto de cada um naquela tenda, cada sorriso, cada olhar. Sentiu o cheiro saboroso da comida e o calor do sol que os aquecia. Seus olhos marejaram e ficou em silêncio por alguns instantes para então retomar. Pouco temo, você bem sabe que já perdi bastante e, neste momento, é o bem-estar de vocês que me interessa. É o bem-estar de vocês que me motiva... Seu tom era melancólico, mas determinado. Não sou forte ou ágil, Ileana, por favor, não tire de mim meu único trunfo. Lamentaria me sentir um peso-morto nesta luta.

– Você sabe que pode muito mais do que isso! Quantas vezes tivemos esta conversa. Não vê que o cansaço não lhe permite pensar com clareza! Sua voz transmitia uma indignação que beirava a aspereza. Eu não aguentaria ver mais um de nós morto, simplesmente não suportaria. Não vá, Dimitri, te rogo.

– A morte é um galope de cavalo. Tão rápido somos levados quão rápido enxergamos o que estava distante.

– Estou farta de seus livros de poesia barata. Eu preciso de você, Dimitri, inteiro, aqui, no mundo real.

– Amanhã, ao anoitecer, teremos mais um recurso ao nosso favor, avise aos demais. Sacou seu relógio de bolso e colocou na mão de Ileana. Fique com meu relógio, ma chérie. Quando os ponteiros marcarem 18h00 ouvirá o barulho de minha carroça. Que sirva também para que se lembre de mim...

– Não poderia te esquecer... Segurou firme o relógio nas mãos e assistiu em um silêncio contido Dimitri se levantar.

Estava exausto e agradeceu por poder viajar só. Que os cavalos o levassem até seu destino enquanto recuperasse o ânimo, iria precisar de todo o necessário para a negociação. Voltou para casa para pegar seu chapéu e parou frente à porta por alguns segundos antes de sair. Reparou nas paredes da improvisada construção que de tão bom grado lhe cederam. Talvez estivesse muito habituado à carroça, pois era incapaz de dormir sob uma tenda. Analisou uma última vez os móveis e saiu esquecendo a porta aberta.

Subiu na carroça e a direcionou ao seu destino. Sabia exatamente o que queria e o que tinha que fazer. Conscientemente tinha clareza de sua missão, ao mesmo tempo em que algo no fundo de seu coração lhe confirmava um propósito maior. Atiçou os cavalos e pegou a estrada. O sol ardia a pele, mas uma brisa refrescante atravessava suas vestes. Ainda conservava peças do vestuário europeu, havia nostalgia em trajar colete e chapéu, assim como rapidamente havia compreendido que é mais fácil vender aos nobres quando se parece um deles - ainda que seus traços o denunciassem, nada que seu sotaque não contornasse. O embalo do trote era hipnótico para aquele corpo cansado. Sentiu os olhos pesarem inúmeras vezes. Podia até jurar que dormiu durante um trecho menos árido da estrada. Sua rota compreendia alguns quilômetros até uma vila onde alguns nobres se refugiaram acreditando estarem seguros. Dimitri quase ria sozinho pensando quão frágeis eram seus muros e suas crenças.

A noite chegou junto com um sono avassalador. Pensou ser imprudente continuar daquela forma e jamais permitiria ser derrotado por este inimigo. Parou a carroça ao lado da estrada, abaixo de uma árvore muito alta. Alimentou os cavalos e checou suas condições, assim como as da carroça. Foi ao verificar a tensão das cordas que notou quão estrelado estava o céu daquela noite. Desde pequeno era fascinado pelas estrelas, as via como diamantes em um grande manto azul celeste. Lembrou das noites em Paris quando, muito jovem, fugia de casa para contemplá-las. Seu pai dizia que cada estrela era como um sonho que se desprendia do nosso coração e era estampado no céu para nos lembrar daquilo que desejamos. Em noites como essa, era como se inúmeros corações flamejassem e se encontrassem, iluminando mesmo as noites mais escuras. Não sabia quanto tempo havia passado, mas isso também não importava mais. Entrou na carroça quase sonâmbulo e se aninhou no conjunto de mantas que tratava por cama. Algo muito simples, mas aconchegante para um viajante cansado.

O dia seguinte amanheceu nublado. Nos primeiros sinais de luz, Dimitri despertou se sentindo renovado na medida em que isso era possível. Estranhava como o melhor dos descansos só o recuperava parcialmente e desejava se sentir plenamente vivo como fora outrora. Porém, toda sua atenção agora convergia na missão: vender uma velha taça ornada com um brasão de armas. Detestava a irracionalidade otomana e o clima bélico que os rodeava, mas devia transformar o desgosto em apreço para fazer daquela peça o item mais valioso que um nobre poderia ostentar em sua residência, pelo menos um pertencente aos grupos mais reacionários e alinhados aos propósitos de dominação.

O caminho adiante tinha como pano de fundo uma planície e ao longe podia ver os muros de pedra da vila. Mais algumas horas o separavam do destino, tempo suficiente para ensaiar o grande enredo que explicava a aquisição da tão renomada relíquia otomana. O cansaço o afetava, mas não o suficiente para impedir seu propósito. Fez apenas uma parada para comer o que havia guardado para a viagem. Era incapaz de passar longos períodos sem se alimentar, estava realmente exaurido na noite anterior para que nem mesmo a fome o animasse. Desembrulhou o kolaco e degustou cada mordida. Arrancou os pedaços com a mão levando-os à boca de olhos fechados. Não fora o valor nutricional do alimento que lhe trouxera mais ânimo, mas o simples ato de se alimentar. Que deleite.

Os cavalos pareciam agitados conforme se aproximavam da vila. Pela posição do sol chegaria pontualmente no local combinado e sentia que estava preparado. Não demorou para ver um homenzarrão de vestes formais encostado no muro ao lado de um portão de ferro. Combinaram do lado de fora, o contato pediu discrição, “é melhor que não saibam que a peça foi vendida por um ambulante”, ouviu. “Quanta ousadia! Logo eu, tão distinto mercador”. Se entretinha em seus pensamentos com frases não ditas. Parou a carroça do lado do homem que falava por baixo de uma espessa barba.

– Você deve ser o ambulante. Sua voz era rouca e abafada, mas de precisa dicção.

– Ao seu dispor, monsieur. Sentiu seu estômago revirar duas vezes, mas sua voz tinha o encanto de uma flauta. E você deve ser o grande Radomir, senhor de terras, je suis enchantè.

– Você trouxe o copo? Parecia pouco ligar para Dimitri e seus cortejos, o que o deixava preocupado.

– A taça, mon cher, a taça utilizada pelo próprio imperador quando... Parou ao ser interrompido pelo brutamontes.

– Me deixe ver. Sua expressão e voz eram secas. Dimitri foi até a parte de trás da carroça e fez algum teatro ao manipulá-la como se tivesse em posse do Santo Graal. Em uma reverência estendeu a peça ao homem que, num movimento brusco, a pegou e começou a analisar.

– As condições não são as melhores. Retrucou.

– Veja, meu bom homem, há um longo caminho da mesa do imperador até vossas mãos, claro que a curadoria do vendedor deve ser valorizada, imagine só se... Novamente havia sido interrompido.

– Pago 50 moedas.

– Devo lamentar que a oferta de nosso intermediário era clara sobre as 100 peças de ouro...

– 100?! Exclamou, os bigodes se projetando para a frente e os ombros se tencionando para cima. É claro que tenho o valor e que esse copo merece ser utilizado por mim, mas não faça graça. Puxou um saco de moedas do bolso e o entregou a Dimitri de maneira ríspida.

– Insisto e lamento minha reincidente insolência, mas o que diriam seus subordinados se soubessem que a taça do senhor Radomir valeu apenas 50 moedas. Estava aflito e sentia a iminência de um pesado soco caso o pressionasse demais, mas tinha que arriscar. O homem tencionou ainda mais os ombros, parecia crescer diante dos seus olhos.

– Realmente insolente! Vou garantir que ninguém mais aqui faça negócios com você ou seu maldito intermediador. Vá embora antes que eu quebre o pescoço de um dos seus cavalos!

– Foi um prazer fazer negócios convosco. Disse enquanto segurava um choro de desespero ao ver o homem ir embora. Guardou o dinheiro na carroça, a reposicionou e partiu de volta.

Desolado. Culpava-se sem nem saber pelo quê. Sua única função havia falhado, novamente. Lágrimas caiam enquanto os cavalos puxavam a carroça em ritmo lento. Maldizia seu fracasso na missão e sua falta de força. 50 moedas não eram suficientes, o que fez não era suficiente, mais uma vez insuficiente. Lembrou de sua missão oculta – ou talvez fosse a principal – e alinhou os cavalos para que chegassem ao acampamento, tal como havia planejado. Olhou para o céu buscando as estrelas, mas não podia vê-las naquela hora do dia. Retirou um pequeno frasco do bolso e o segurou em uma das mãos. Tremia e soluçava ao abrir. Enquanto se certificava que os cavalos chegariam sozinhos ao destino, lhe veio novamente a imagem das 50 moedas, então do acampamento e por fim de Ileana. O pranto era levado pelo vento e o líquido esverdeado do frasco derramava com o movimento da carroça. Não podia acabar assim, sentia que precisava fazer mais, tinha que fazer mais. Guardou novamente o frasco no bolso, lamuriando ter falhado nas duas missões. Seu corpo estava exausto e não pôde conter o cansaço que o conduziu a um sono profundo.

Dimitri acordou com um conhecido som de música cigana ao se aproximar do acampamento. Por fim, ao menos os cavalos tiveram êxito. Não soube como se equilibrou no assento da carroça ou quanto tempo havia se passado, mas estava de volta. Anoitecia e parecia haver uma animada festa. Parou perto de sua casa, cuja porta havia sido fechada. Saiu lentamente da carroça e se dirigiu à entrada, empurrando-a para abrir. Sentia seus membros pesarem o dobro e chegou a olhar em direção àqueles que dançavam com a música. Quando se voltou à porta, ouviu um gemido próximo. Por um momento pensou estar delirando ou, mesmo que não estivesse, que não poderia fazer muito mais naquele dia. O gemido se tornou um grito abafado de dor acompanhado de uma respiração vacilante. Seu corpo entrou em alerta e então começou a procurar de onde vinham os sons.

Passou pelos cavalos e há alguns metros dali a encontrou. Era uma mulher de longos cabelos pretos com as maçãs do rosto caracteristicamente cavadas. Estava deitada, ferida e com distintas vestes rasgadas. Dimitri se questionou como uma nobre havia chegado ali naquele estado. Uma de suas hipóteses era a fuga de uma árdua luta, pois havia marcas de arranhões. Ela se esgueirou em sua direção estendendo a mão. Parecia fraca, muito aquém do que quer que pudesse ser. De sua boca saiu algo que não pôde compreender e, num ato de impulso, a tomou nos braços e a levou para o centro do acampamento. Não podia dar a assistência que ela precisava, mas podia fazer algo. Chegou próximo à fogueira quando a música cessou abruptamente e todos pararam para ver. Alguém gritou e Ileana correu ao seu encontro. Vozes começaram a surgir por todo lado e o vento balançava as chamas diante deles. 

Não podia conter mais o corpo em seus braços, então se agachou segurando-a em seu colo. Foi ali que seus olhos se encontraram pela primeira vez: no calor do fogo e ambos em suas fragilidades. O instante durou segundos, pois ela logo desfaleceu. Entretanto, ele continuou a olhando sem entender o que estava acontecendo ali. O barulho era alto e confuso e Ileana balançava Dimitri. Eventualmente ele percebeu e respondeu pedindo que o ajudasse. Reuniu as últimas forças para erguer a mulher e ambos a carregaram para a casa de Dimitri. 

Com cuidado eles a deitaram em sua cama. Dimitri tratou de aquecer um pano e limpar suas feridas e Ileana trocou suas vestes rasgadas por uma das suas. Ele estava preocupado e tinha a mesma tenacidade demonstrada ao realizar uma missão. Poderia aquela nobre ajudá-los? Por que não conseguia parar de olhar para ela? A cigana notou Dimitri compenetrado e se dirigiu a ele em voz baixa:

– Querido, estou feliz que voltou. A frase foi como uma faca cortante que o trouxe de volta à realidade. 

– Eu falhei… Disse encarando-a visivelmente cansado. Só consegui 50… 

– Shh… Você voltou, está aqui. Não falhou comigo… e nem com ela. Disse apontando o nariz para a estranha. Tome, vai precisar disso aqui. Ileana lhe devolveu o relógio de bolso com um olhar de malícia. Sabe… Eu sonhei com você mais uma vez na noite passada. No sonho você morria, mas continuava exuberante. A carroça ainda era puxada por dois corvos gigantes, mas dessa vez eles faziam sua carroça voar pelo céu azul. E ao seu lado estava o cadáver de uma jovem de cabelos negros. Descanse querido, amanhã vai nascer outro dia. 

Dimitri adormeceu no chão, ao lado da mulher e, mesmo confuso, de algumas coisas estava certo: a guerra havia finalmente chegado ao acampamento; não havia falhado na missão de abraçar a morte e jamais faria outra viagem sob a luz do sol. 

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

A ópera de Saturno

 

Corri o tanto que meus pés aguentavam, talvez mais, com certeza mais. Podia ouvir o som agudo vibrando meus tímpanos: alto e penetrante, o violino de Saturnália. A melodia me guiava para aquilo que acreditava ser um fio de liberdade, um sopro de vida, uma possibilidade de fuga de meu cativeiro. Estava descalço e o asfalto estava quente e áspero. Talvez pudesse correr mais se não sentisse meus membros tão débeis pela alimentação inapropriada.

A cidade estava enfeitada de verde e vermelho, mas eu não estava prestando atenção ao meu redor. Apenas corria como se cada passo seguisse o compasso da melodia em meus ouvidos. O som se tornou agudo, então fechei os olhos por alguns segundos, como se tentasse capturar sua beleza e retirar dali força e determinação para prosseguir. Não era um problema fechar os olhos, a grande cicatriz em meu olho direito me conferia uma visão quase monocular. Maldito dia em que senti o couro tocar meu corpo e dilacerar minha pele. Eu que sempre mantive preocupações de estética apolínea me tornara um monstro.

Atravessei a praça principal quando senti as forças se esvaindo e, num tropeço, levei os braços a frente. Confiei minha proteção a eles. Me senti tolo, traído, pois não foram capazes de me sustentar. Tinha o úmero esquerdo parcialmente fraturado e, no braço direito, uma urticária havia deixando bons hematomas que tornavam o membro mais frágil do que deveria. Durante a queda me lembrei dos dois dias preso à cama, um braço pra frente do corpo e o outro pra trás. Não era preciso qualquer exame para saber que a postura havia afetado o braço esquerdo mais do que eu gostaria. Senti o asfalto ralando meu rosto durante a queda enquanto música assumiu um ritmo calmo, como se orquestrasse a cena. Algumas pessoas olharam, não reparei ou não quis reparar. Não podia lidar com aquilo naquele momento. Deixei no chão algumas lágrimas, então levantei e prossegui.

Já havia atravessado o centro e a parte velha da cidade, podia sentir o cheiro do campo de onde estava. Nesta altura, a canção acelerou o ritmo, tal como o chamado de uma criança para brincar. Senti a energia me contagiando e nem a coceira no braço podia me distrair. Há meses sofria por conta de uma alergia causada pelas pesadas cobertas de lã. No começo vermelhidão, depois o inchaço e então os vergões. Não importava, não precisava do braço agora, estava perto.

O perímetro urbano chegou ao fim, sentia o cheiro da casca das árvores, mas havia algo estranho. Há alguns minutos notara que o som do violino havia parado e o zunido do silêncio parecia ainda mais alto em meus ouvidos. Olhei em volta procurando por respostas, como se elas pudessem estar ali, visíveis. Nada. Ao longe ouvi uma risada de criança. Não, era um riso etéreo, quase sobrenatural, que ecoava. Não poderia ser de uma criança. Lembrei das seguidas noites na biblioteca estudando as lendas da região. Bruxas, duendes, fadas, desaparecimentos, sons inexplicáveis. Li detalhadamente cada escrito que citasse o mês de dezembro e relatasse som de violino. Eu conhecia a lenda, todos conheciam, mas a maioria julgava tolo demais acreditar em “histórias da Carochinha”. Pra mim era real, tinha que ser real... temia que não fosse. Muito se dizia sobre uma fada que tocava violino nessa época do ano. Alguns temiam suas armadilhas, outros mencionavam que era mal agouro ouvir sua música, mas foi uma carta que realmente despertou minha atenção e transformou minha esperança em obsessão pela história. Estava no meio de um desses livros, dobrada quatro vezes e escrita numa letra cursiva e vacilante. Mencionava um lugar na floresta ambientado por sons de flauta e tambor onde era possível ser livre. O tom da carta era lamurioso e terminava dizendo que não tivera a mesma coragem da amiga, que já não via há anos. Voltei a mim quando a risada ficou mais próxima.

Voltei a correr, não mais seguindo o som do violino, que cessara por completo, mas a risada fantasmagórica. O som vinha de um arbusto mais adiante na mata, onde o ar se tornava frio e a floresta escura. Por um instante olhei para trás e não reconheci o caminho antes percorrido, mas apenas ignorei o frio na espinha que isso me causou. Ao chegar no arbusto vi dois pés pequenos que tentavam com pouco esforço se esconder. Então, dois braços saíram da folhagem, estendidos, como se pedissem um abraço. Não conseguia entender e, por um momento, temi estar errado. Talvez estivessem certos aqueles que pediam cautela e que se evitasse a floresta em dezembro. Antes que eu pudesse reagir os braços me puxaram. Eram fortes demais para ser de uma criança e o arbusto grande demais para ser real. Cai durante alguns minutos sem conseguir enxergar o que estava ao meu redor e quando meu corpo tocou o que quer que fosse o chão o medo tomou conta de mim.

Ouvi risadas de crianças, homens e mulheres, gritos, ofensas e estalos. A melodia do violino ressurgiu, mas não era a mesma: seu ritmo era intenso e caótico, tão agudo que feria minha mente. Tateei em volta procurando por qualquer coisa que pudesse me ajudar, mas a dor no braço era lacerante e dificultava o processo. “Então você gosta de brincar?”. Foi o que escutei sem saber de onde. Devia ser ela, sentia isso tanto quanto sentia que meu fim estava próximo. Então a voz continuou “Uma pena que vocês não sabem brincar”. O tom desta vez foi gélido como a floresta, quase ameaçador, ainda que de uma doçura inexplicável. Foi então que ela se aproximou ou pelo menos foi quando a vi se aproximar. Era pequena, estava descalça e sua pele era cintilante. A cabeleira encaracolada batia com a descrição da lenda e apoiado no ombro estava ele, com sua madeira tingida de vermelho sangue, o violino. Podia ver ela tocar habilidosamente, sem o menor esforço. Não acreditava que havia finalmente a encontrado, senti um misto de satisfação e terror. Ainda me esforçava para alcançar algo para me defender e talvez fora a dor em minha expressão que a fez parar de tocar a música. Ela chegou muito perto do meu rosto, havia agora curiosidade. Seus grandes olhos me estudaram por alguns instantes e então ela se sentou na escuridão.

– Intrigante. Disse ela. Tem algo em você que é intrigante.

Não consegui responder, todo meu corpo tremia. Ela fez um gesto como se me pedisse para se aproximar, o que obedeci prontamente me rastejando como pude. Ela segurou meu rosto com a mão enquanto a outra percorria o cavanhaque em meu queixo.

– Você cheira como eles, se veste como eles, parece com eles... Parou enquanto analisava detalhadamente o cavanhaque, então prosseguiu. Mas não é um deles! Seu grito macabro acompanhou a mão que arrancou metade dos pelos. Gritei em seguida, meus olhos reviraram de dor. Não consegui mais sustentar meu corpo deixando-o cair ao lado da violista de Saturnália. Estava esgotado, entregue e disse a única coisa que podia: “por favor”. Não lembro exatamente o que aconteceu depois. Vi vultos, mas talvez fosse apenas ela que andava ao meu redor como se decidisse o que fazer comigo. Senti meu corpo sendo puxado e então encostado em uma árvore e demorei até conseguir recobrar a consciência.

Acordei em uma clareira na floresta sentindo o calor da chama de uma fogueira. Havia um falatório e também música. Esta era bem diferente das anteriores, era festiva e alegre, composta por tambores, flautas e violino. Com algumas piscadas de olho notei uma série de pequenos seres de pele cintilante e cabelo colorido. Nada do que havia lido chegava perto da imagem que estava diante de mim. Logo, pendurado de ponta cabeça na árvore onde eu estava, uma fada desceu até a altura dos meus olhos e anunciou que eu havia acordado. Todos gritaram em tom de comemoração e pude ver a violinista no centro me encarando compenetradamente. Ela se aproximou e os tambores aumentaram o ritmo.

-Por favor...? De maneira desconcertante sua voz era luxuriosa, assim como seus movimentos. Pois então cederei ao solene pedido do cavalheiro. Continuou ela. Então, com um gesto de sua mão, senti meu braço esquerdo sendo levantado contra minha vontade. A dor que senti em seguida foi pior do que a anterior, quando ela me havia arrancado parte do cavanhaque. O osso quebrado do meu braço simplesmente deslizou para fora rasgando a carne frágil. A violista sorria docemente, parecia aproveitar cada instante daquele momento. Eu estava suando, não podia mais mexer aquele braço e, antes de me dar conta do que estava acontecendo, era o outro braço que levantava agora. Meus olhos assistiam amedrontados o que viria. Com outro gesto, ela apontou para os vergões pestilentos que, um a um, se descolaram da minha pele deixando a carne exposta. Várias fadas urraram e outras riam e eu não conseguia mais suportar a dor.

– Agora só falta uma coisa. Disse a violinista se aproximando de meu rosto com um sorriso demoníaco. Levantou a mão com um movimento de pinça e, de uma forma que não se explicar, puxou a cicatriz do meu olho como se esta fosse apenas uma sutura malfeita. O que estava em sua mão me lembrava um verme amassado e seco e agora era meu olho que doía como se uma parte da pele tivesse sido arrancada. Talvez realmente tivesse sido. Cai de lado me contorcendo de dor e maldizendo minha vida. Lembrei de cada agonia, cada lágrima e cada aflição que senti enquanto repetia baixinho, em meio a soluços, “por favor, por favor, por favor”.

Duas fadas se aproximaram de mim e me levantaram... aquele seria o golpe fatal. Elas me seguraram pela cintura enquanto a violinista começou a fazer gestos que mais lembravam uma dança. Diante dos meus olhos vi meu osso arrancado se alongar, aumentando, ganhando contornos e curvas e, de repente, tomando a forma de um violoncelo. Um belo violoncelo branco como o marfim e resistente como o osso que fora. Em seguida os vergões colados a restos de pele flutuaram em direção ao violoncelo, se alongando e assumindo o lugar das cordas. Um som grave ecoo pelo clarão quando o vento passou por elas. Por fim, do lugar onde estava no chão, vi minha abominável cicatriz tomar a forma de uma vareta que pairou pousando ao lado do violoncelo. A violinista de Saturnália parecia satisfeita, pude ver seu sorriso de dentes pontiagudos admirando a obra que realizara. Então se virou para mim e disse em tom amistoso:

– Estávamos precisando de um violoncelo, foi muito útil. Suas feições eram meigas, desconcertantemente contraditórias ao conjunto. Mas diga-me... Continuou ela. É isso mesmo que deseja? Posso pôr fim a sua dor agorinha!

Tonto e com muita dor tinha dificuldade de pensar e compreender o que estava acontecendo, mas tinha certeza, há muito tempo. Desejei com todas as minhas forças que tudo acabasse ali e fechei os olhos. Mal podia acreditar que estaria finalmente livre da dor – não, estaria realmente livre de tudo. Pude sentir a violista se aproximar e, mesmo de olhos fechados, notei um clarão surgir a minha frente, muito mais intenso do que a fogueira.

– Acho que você se equivocou, não posso dar o que deseja, você não merece... Havia deboche em sua fala. No entanto, insisto, posso pôr fim a sua agonia. Finalizou.

Abri os olhos e senti a região da cicatriz arder. As duas fadas me soltaram e a violinista me estendeu a mão. Cai no chão mais uma vez e pude notar que o clarão vinha de uma luz intensa, como fogo fátuo. Não era preciso ter lido todos aqueles livros para saber que se tratava de um círculo de fadas, essa era uma das crendices mais conhecidas naquele mundo. Porém, o círculo era real e a fada era real, assim como a história. Num lampejo me lembrei da carta. Seria possível, realmente, ser aquela a porta que tanto procurei? Ou seria apenas mais uma artimanha daquela fada das trevas para me desgraçar?

– Você é um tolo. Riu baixinho a violinista. Eu já estive nesta posição. Se abaixou do lado oposto do círculo enquanto mantinha a mão estendida. Eu já sofri a sua dor, cavalheiro. Por um instante achei que ela mesma havia se surpreendido com a frase que acabara de sair de sua boca. Posso te deixar aqui ou você pode vir com a gente. De qualquer jeito você conseguirá o que tanto busca. A morte é um conceito tão relativo. Disse estendendo as últimas vogais de maneira lúdica. Seus grandes olhos brilhavam.

Comecei a me arrastar em direção ao círculo. Apenas um braço me permitia o deslocamento. Me lembrei de onde morava, do frio, da lã pesada, da coceira. Mais alguns centímetros adiante. Me lembrei da cama, do colo não dado, das palavras de ódio. Meus dedos estavam se enterrando no chão para me puxar. Senti o calor do círculo tocar meu rosto. Me lembrei do espelho quebrado e a mão sangrando e de repente senti um cheiro delicioso de torta de maça. Há tantos anos não comia uma dessas, simplesmente a minha preferida. Após minha cabeça e pescoço, o resto do corpo começou a deslizar para dentro do círculo. Segurei a mão da violista, que apertou a minha de volta.

As fadas ficaram radiantes e gritando vivas e o calor da fogueira se tornou acolhedor. A violinista me puxou e pude ver meu braço se regenerando, vi o tecido se reparar e a pele adquirir uma coloração mágica. Em pé segurei preocupadamente o braço desossado, mas logo senti que aquilo não era mais um problema. Consegui me equilibrar e me manter firme ao chão, era como se todo meu corpo estivesse mudando e ficando mais leve. Os pelos do cavanhaque que ainda restavam caíram no chão e evaporaram e, neste instante, pude notar que as fadas me olhavam como a um igual. Notei que o cheiro não era de torta, mas sim do ar que havia se tornado não só leve, mas também doce ao meu olfato.

Olhei em volta procurando a violista que havia sumido quando a ouvi me chamar há alguns metros de onde estávamos. Ela apontou para um rio que cruzava a floresta e eu, sem entender, me abaixei para ver. Não era para o rio que ela apontava, era para o meu reflexo. Traços finos ganharam meu rosto e foi um sorriso pontiagudo que apareceu em minha boca quando notei estar livre da cicatriz. Estava hipnotizado pela imagem e só sai de lá quando ela me cutucou pela terceira vez e apontou para o violoncelo. Era o instrumento mais imponente que já havia visto e o mais perto que já havia chegado de qualquer instrumento musical. Ousei pegar, mas hesitei antes de conseguir. Foi a mão da violista que guiou a minha e que depois me entregou a vareta. Ela e algumas fadas que estavam perto se sentaram em volta pra ouvir. Eu não tinha ideia do que fazer, mas não temi. Me sentei em uma pedra e segurei o violoncelo. Era pesado, sólido como a própria terra aos meus pés. Posicionei a mão nas cordas e elevei a vareta.

Uma nota grave ressoo por toda floresta, chegando à vila e fazendo algumas aves voarem. Uma senhora que passava pela rua fez o sinal da cruz ao sentir um arrepio. Três crianças que brincavam na praça pararam para ouvir quando as outras notas chegaram e então começaram a dançar quando o som de um violino se uniu à melodia. Elas riam, tal qual as fadas da floresta naquela noite Saturnália. Vi a neve começar a cair e pela primeira vez um sentimento surgiu em mim: estava em casa.

 

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Leve

Trabalhava de maneira descuidada, pois sabia que em breve iria me demitir.
Me distraia em discussões acadêmicas, pois sabia que em breve não precisariam mais de mim.
Aproveitava a viagem de maneira única, pois sabia que em breve o avião iria partir.
Comia me preocupando apenas com a satisfação, pois sabia que em breve iria digerir.
Me machucava conforme minha vontade, pois sabia que em breve meu corpo iria reagir.
Lia despreocupado a última página do livro, pois sabia que em breve a história iria acabar ali.

A brevidade me surpreendia, como um peso que parecia deixar de existir.
Logo eu que tanto queria, passei a esperar pouco do que estava por vir.

Contava as horas como minutos em devir, pois sabia que em breve delas eu poderia prescindir.


segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Pergunta retórica

"Isso é estar feliz?" Rabiscava incessantemente estas palavras em seu caderno de bolso. Em meio a tantos registros detalhados e esquemas mentais essa página parecia caótica, delirante. Olhou pela janela, mas o véu da noite cobria tudo que tocava, não fosse por um feixe de luz que piscava ao longe. Se concentrou no estímulo apertando os olhos e franzindo a testa mais do que era preciso. De repente seus olhos percorreram quilômetros, atravessaram a grama verde e o rio que cruzava a vila. Pôde ver uma lamparina acessa do lado de fora de uma casa simples. Ao seu lado um senhor de longas barbas se inclinava para frente e para trás em movimentos repetidos numa cadeira de balanço. Seu coração batia lento, podia escutar, assim como a chama da vela que farfalhava ao sabor do vento. 

Essa sensação... Era incrível poder ver e ouvir desta forma. Lembrou dos anos passados quando ainda era humano, quando ainda precisava usar aqueles óculos redondos por necessidade e não por descrição. Talvez a visão do velho tenha lhe deixado nostálgico, quase lúgubre, o que parecia quase contraditório considerando o conteúdo da página do caderno aberta ao seu lado. Que paradoxal também lhe parecia o tempo daquela perspectiva... Desviou a atenção da luz e fechou os olhos. Ouviu som de arpa, passos apressados, colunas jônicas, um lenço preto deixado propositalmente sobre o móvel da sala. Se deu conta que até seu pensamento parecia aprimorado ou talvez sempre o fosse, mas não o tomava com clareza. 

Abriu os olhos e se levantou. Atravessou o corredor escuro e se dirigiu até a saída da casa. Ventava muito, mas nada que o incomodasse ou o desviasse da mesma pergunta que o colocara neste estado inquieto. Voltou a acompanhar a única pessoa que lhe fazia companhia naquela noite outonal. Desta nova posição podia ver mais detalhes. O senhor usava pijamas, parecendo bastante confortável. Sua expressão límpida poderia facilmente ser confundida com um cochilo, mas não havia como se enganar: o idoso também contemplava algo ou talvez esperasse por algo. Se perguntou o que pensaria alguém cujo fio da vida não passava de um findado novelo de lã. Por tantas vezes se sentiu assim, não por considerar que seu novelo estava prestes a acabar, mas por achar seu novelo impróprio ao tear a ponto de querer defenestra-lo a qualquer momento. Algo havia mudado... 

Depois daquela viagem para o oriente, depois do contato com aqueles mercadores, depois de ver a roda da carroça tão irreparavelmente quebrada, depois de visitar a Grande Biblioteca, depois... Seu fluxo de pensamento fora interrompido, pois havia se dado conta de que se passaram anos desde sua decisão de deixar a França. Uma brisa passou por seus cabelos e decidiu dar mais uma olhada no velho. Uma cicatriz se destacava em seu braço esquerdo. Talvez seja um otomano desertor, pensou. O tamanho e  o aspecto eram condizentes com perfuração de lâmina, uma perfuração antiga. Levou a mão ao pescoço e pressionou dois pequenos furos, quase imperceptíveis. Depois daquela noite - retomou o fluxo associativo de seu pensamento -, depois de provar seu sangue, depois de sentir o dela se misturar com o meu, depois de assumir a dupla jornada de vendedor e informante... Quanto havia acontecido nestes últimos anos... De repente achou sua vida interessante, digna de nota, talvez de uma história contada. Lembrou da viagem que fez a Paris quando era criança e pôde rememorar como se sentiu pequeno diante de Notre Dame: apenas um menino que tropeçava nas ruas de ladrilho com tantos sonhos guardados... O velho pareceu tentar se levantar, mas logo cambaleou de volta ao assento. A vela da lamparina mal podia se sustentar e, num movimento quase involuntário, estava ele ao lado de seu companheiro. 

Sem apresentações olhou para o senhor de maneira gentil e lhe perguntou:
-Isso é estar feliz? 
-Ah meu jovem... Começou ele a responder, mas parando por um momento antes de prosseguir, como se tomasse fôlego. Que pergunta mais ingênua. Não percebe quão retóricos podemos nos tornar diante da vida?

Não entendeu o sentido daquelas palavras, mas não quis interromper. Apenas ouviu:

-...ou quem sabe diante da morte. Ele olhou para a lamparina que agora iluminava quase nada e, sem lhe dirigir o olhar, prosseguiu. Acha que alcançou o que deseja? Ou acha essa também uma pergunta retórica?

O velho riu um riso abafado e cansado. Se recostou na cadeira e mirou o horizonte que pouco distinguia o céu da terra. Então, antes da vela terminar, Dimitri escutou as últimas batidas daquele coração. Parou por alguns instantes, reflexivo e ajeitou os óculos no rosto, até lembrar que os deixara ao lado do caderno de bolso, tendo apenas tocado a testa com o dedo indicador. Se sentou no chão, ao lado do velho, e olhou na mesma direção de sua derradeira visão. Enxergou a vasta planície e o caminho até Brasov. Viu uma revoada de pássaros e os primeiros indícios do sol que viria logo a apontar. Voltou para a casa, pegou um rolo de papel e tinta e redigiu uma carta relatando aquela noite. Este não era um informativo, era uma epístola a uma interlocutora estimada e carregava muito de seu sentimento. Havia adquirido este hábito de compartilhar, gostava de pensar que ela o lia como a um livro. Gostava da sensação que isso lhe trazia.

Sorriu enquanto escrevia as últimas linhas: sinto sua falta, draga mea. Dobrou o manuscrito e o colocou junto ao caderno de bolso. Fechou-o sem pestanejar e repetiu pra si mesmo: pergunta retórica?

domingo, 25 de agosto de 2024

Chame-me pelo meu nome

     Era um fato inegável: havia me apaixonado por uma bruxa. Percorria meus dedos por seu rosto enquanto constatava a verdade de meu coração. A pequena cabana em Donnelaith havia se tornado nosso refúgio e nem mesmo o frio escocês era capaz de abrandar a chama do meu desejo. Ainda conseguia ouvi-la proferir as palavras que contornaram as pedras e sacodiram as copas das árvores. Ainda podia sentir como era estar pela primeira vez em sua presença e como os olhos da pequena Deborah me olhavam com curiosidade. 

     Acompanhar seus dias se tornou minha função ou, para ser mais preciso, minha satisfação, minha discreta obsessão. A gratidão de cada um daqueles que curava era a mesma que a minha em vê-la curar. No entanto, foi quando senti seus lábios nos meus que estes pensamentos então se tornaram distantes. A tecitura temporal se distorcia nesses momentos, o que talvez se devesse ao fato de minha materialidade recém-adquirida neste mundo. Ainda havia muito a compreender, mas tinha certeza: eu amava Suzanne de May Fair. 

     Enquanto ela acariciava meu cabelo, sentia sua pele maliciosamente perfumada de unguento floral. Seu beijo, cada vez mais voraz, disfarçava um sorriso travesso que jamais me passaria desapercebido, nem mesmo em uma ocasião como essa. Me entreguei aos seus braços, repousando meu corpo sobre o dela. Amamo-nos enquanto ouvíamos o ranger das árvores que se curvavam do lado de fora da cabana. O burburinho local dizia que os ventos estavam incomuns ultimamente e nem mesmo os velhos carvalhos eram capazes de suportar tamanha força. Contudo, nada se compara à força das palavras que ouviria naquela noite, da bruxa de Donnelaith, sussurradas no ouvido: meu Lasher... Por uma fração de segundo pude admirar sua diabólica beleza e então perdi os sentidos.