O sol brilhava forte naquele acampamento cigano. Dimitri consultou seu relógio de bolso e calculou quantas horas restavam até a hora de sua partida. Não havia pressa, seria uma viagem curta e objetiva: encontrar aquele que havia lhe prometido uma boa quantia por uma peça otomana que conseguira por meios que não precisam ser explicados. Dimitri sempre demonstrou aptidão para as vendas, no acampamento alguns chegavam a chamá-lo de “língua de prata”, ele tinha seus meios.
Secou o suor da testa e foi conferir a carroça que ficava parada na frente de sua casa. Algumas crianças brincavam na terra, saltitando e bradando gritos enquanto fingiam lutar na batalha imaginária que travavam ao imitar os adultos. Dimitri sorriu enquanto os observava, pensou que ao menos para alguma coisa aquela guerra servia. Seus dois cavalos negros o esperavam, alimentados e descansados. Acariciou a crina daquele que estava mais perto, que retribuiu encostando a cabeça em seu peito. O gesto o surpreendeu, era como se o animal sentisse algo, se preocupasse com algo. Checou as travas, o assento e as rodas. Estas sempre foram sua maior preocupação. Jamais abandonaria sua carroça e a sensação de não poder retornar o apavorava. Deu dois tapas na ornada madeira da carroça, como quem se despede de um velho amigo e se dirigiu a tenda onde as refeições principais eram feitas.
O cheiro da sopa logo encontrou seu olfato e rapidamente Dimitri se serviu de uma tigela. O clima era amistoso, havia conversas aqui e ali e o senhor que servia a sopa cumprimentava cada um com um largo sorriso.
– O de sempre, meu rapaz?
– Sim... Respondeu ele reticente. S'il te plait.
Não era preciso conhecê-lo profundamente para saber que andava com menos energia do que antes. Nunca fora alguém festivo, jamais tocou em um instrumento que não fosse por propósitos comerciais e, nas rodas de história, era quem menos se ouvia. No entanto, era quando estendia o tapete ao redor da carroça que a magia acontecia. Se transformava ao anunciar orgulhosamente “as maravilhas do mundo”, como costumava chamar. Uma esquisitice mais intrigante que a outra e toda sorte de utilitários domésticos. Às vezes até se metia a vender temperos e há quem acredite que Dimitri realmente era dotado de elevados conhecimentos culinários – nunca saberemos. Acontece que há meses suas viagens haviam se tornado mais longas e muitos se perguntavam se os negócios teriam falido, pois havia parado de fazer suas famosas exposições de venda.
Estava na metade da tigela de sopa quando uma moça de cabelos ondulados se sentou junto à mesa. Ileana era a pessoa mais próxima a Dimitri e fora quem o acolheu na noite tempestuosa em que chegou ao acampamento com sua carroça quase completamente destruída. Ela segurou sua mão e disse de maneira carinhosa:
– Querido, esta noite vamos nos reunir para discutir o que fazer. O conflito se aproxima cada vez mais e temo pela paz de nossas crianças.
– Eu entendo sua preocupação, Ileana, mas receio ser algo inevitável. Respondeu enquanto engoliu seco a colherada de sopa. Eu vi movimentações de soldados por toda a região, é só questão de tempo até alguém aparecer aqui e nos envolver nessa guerra.
– Nós temos que agir! Sua voz não era ríspida, era desespero o que sentia e Dimitri sabia bem disso.
– E nós iremos. Tenho coletado livros, mapas e documentos. Qualquer coisa que possa nos dar informação sobre aqueles que nos ameaçam e esta noite vou conseguir uma boa quantia de ouro. Ele fez um sinal para que Ileana se aproximasse e assim ela o fez. Esta quantia será suficiente para nos manter em caso de fuga e nos salvaguardar em caso de barganha.
– Dimitri, você se arrisca... Ela apertou sua mão e prosseguiu reticente. Talvez não devesse... Ileana parou um instante, fechou os olhos e respirou, como se estivesse se preparando para algo. Eu tive um sonho na noite passada. Sua carroça estava vazia no centro do acampamento, a porta semiaberta e de dentro dela vertiam rubis. Na frente não havia cavalos, mas dois grandes e sombrios corvos que bicavam o solo. Fique, querido, precisamos de cada um de nós aqui.
– Vocês me acolheram quando eu mais precisei e são o mais perto que tenho de uma família. Não posso deixar escapar uma grande oportunidade quando vejo uma. Não neste momento. Não arriscaria... Havia se interrompido ao olhar em volta. Fitou o rosto de cada um naquela tenda, cada sorriso, cada olhar. Sentiu o cheiro saboroso da comida e o calor do sol que os aquecia. Seus olhos marejaram e ficou em silêncio por alguns instantes para então retomar. Pouco temo, você bem sabe que já perdi bastante e, neste momento, é o bem-estar de vocês que me interessa. É o bem-estar de vocês que me motiva... Seu tom era melancólico, mas determinado. Não sou forte ou ágil, Ileana, por favor, não tire de mim meu único trunfo. Lamentaria me sentir um peso-morto nesta luta.
– Você sabe que pode muito mais do que isso! Quantas vezes tivemos esta conversa. Não vê que o cansaço não lhe permite pensar com clareza! Sua voz transmitia uma indignação que beirava a aspereza. Eu não aguentaria ver mais um de nós morto, simplesmente não suportaria. Não vá, Dimitri, te rogo.
– A morte é um galope de cavalo. Tão rápido somos levados quão rápido enxergamos o que estava distante.
– Estou farta de seus livros de poesia barata. Eu preciso de você, Dimitri, inteiro, aqui, no mundo real.
– Amanhã, ao anoitecer, teremos mais um recurso ao nosso favor, avise aos demais. Sacou seu relógio de bolso e colocou na mão de Ileana. Fique com meu relógio, ma chérie. Quando os ponteiros marcarem 18h00 ouvirá o barulho de minha carroça. Que sirva também para que se lembre de mim...
– Não poderia te esquecer... Segurou firme o relógio nas mãos e assistiu em um silêncio contido Dimitri se levantar.
Estava exausto e agradeceu por poder viajar só. Que os cavalos o levassem até seu destino enquanto recuperasse o ânimo, iria precisar de todo o necessário para a negociação. Voltou para casa para pegar seu chapéu e parou frente à porta por alguns segundos antes de sair. Reparou nas paredes da improvisada construção que de tão bom grado lhe cederam. Talvez estivesse muito habituado à carroça, pois era incapaz de dormir sob uma tenda. Analisou uma última vez os móveis e saiu esquecendo a porta aberta.
Subiu na carroça e a direcionou ao seu destino. Sabia exatamente o que queria e o que tinha que fazer. Conscientemente tinha clareza de sua missão, ao mesmo tempo em que algo no fundo de seu coração lhe confirmava um propósito maior. Atiçou os cavalos e pegou a estrada. O sol ardia a pele, mas uma brisa refrescante atravessava suas vestes. Ainda conservava peças do vestuário europeu, havia nostalgia em trajar colete e chapéu, assim como rapidamente havia compreendido que é mais fácil vender aos nobres quando se parece um deles - ainda que seus traços o denunciassem, nada que seu sotaque não contornasse. O embalo do trote era hipnótico para aquele corpo cansado. Sentiu os olhos pesarem inúmeras vezes. Podia até jurar que dormiu durante um trecho menos árido da estrada. Sua rota compreendia alguns quilômetros até uma vila onde alguns nobres se refugiaram acreditando estarem seguros. Dimitri quase ria sozinho pensando quão frágeis eram seus muros e suas crenças.
A noite chegou junto com um sono avassalador. Pensou ser imprudente continuar daquela forma e jamais permitiria ser derrotado por este inimigo. Parou a carroça ao lado da estrada, abaixo de uma árvore muito alta. Alimentou os cavalos e checou suas condições, assim como as da carroça. Foi ao verificar a tensão das cordas que notou quão estrelado estava o céu daquela noite. Desde pequeno era fascinado pelas estrelas, as via como diamantes em um grande manto azul celeste. Lembrou das noites em Paris quando, muito jovem, fugia de casa para contemplá-las. Seu pai dizia que cada estrela era como um sonho que se desprendia do nosso coração e era estampado no céu para nos lembrar daquilo que desejamos. Em noites como essa, era como se inúmeros corações flamejassem e se encontrassem, iluminando mesmo as noites mais escuras. Não sabia quanto tempo havia passado, mas isso também não importava mais. Entrou na carroça quase sonâmbulo e se aninhou no conjunto de mantas que tratava por cama. Algo muito simples, mas aconchegante para um viajante cansado.
O dia seguinte amanheceu nublado. Nos primeiros sinais de luz, Dimitri despertou se sentindo renovado na medida em que isso era possível. Estranhava como o melhor dos descansos só o recuperava parcialmente e desejava se sentir plenamente vivo como fora outrora. Porém, toda sua atenção agora convergia na missão: vender uma velha taça ornada com um brasão de armas. Detestava a irracionalidade otomana e o clima bélico que os rodeava, mas devia transformar o desgosto em apreço para fazer daquela peça o item mais valioso que um nobre poderia ostentar em sua residência, pelo menos um pertencente aos grupos mais reacionários e alinhados aos propósitos de dominação.
O caminho adiante tinha como pano de fundo uma planície e ao longe podia ver os muros de pedra da vila. Mais algumas horas o separavam do destino, tempo suficiente para ensaiar o grande enredo que explicava a aquisição da tão renomada relíquia otomana. O cansaço o afetava, mas não o suficiente para impedir seu propósito. Fez apenas uma parada para comer o que havia guardado para a viagem. Era incapaz de passar longos períodos sem se alimentar, estava realmente exaurido na noite anterior para que nem mesmo a fome o animasse. Desembrulhou o kolaco e degustou cada mordida. Arrancou os pedaços com a mão levando-os à boca de olhos fechados. Não fora o valor nutricional do alimento que lhe trouxera mais ânimo, mas o simples ato de se alimentar. Que deleite.
Os cavalos pareciam agitados conforme se aproximavam da vila. Pela posição do sol chegaria pontualmente no local combinado e sentia que estava preparado. Não demorou para ver um homenzarrão de vestes formais encostado no muro ao lado de um portão de ferro. Combinaram do lado de fora, o contato pediu discrição, “é melhor que não saibam que a peça foi vendida por um ambulante”, ouviu. “Quanta ousadia! Logo eu, tão distinto mercador”. Se entretinha em seus pensamentos com frases não ditas. Parou a carroça do lado do homem que falava por baixo de uma espessa barba.
– Você deve ser o ambulante. Sua voz era rouca e abafada, mas de precisa dicção.
– Ao seu dispor, monsieur. Sentiu seu estômago revirar duas vezes, mas sua voz tinha o encanto de uma flauta. E você deve ser o grande Radomir, senhor de terras, je suis enchantè.
– Você trouxe o copo? Parecia pouco ligar para Dimitri e seus cortejos, o que o deixava preocupado.
– A taça, mon cher, a taça utilizada pelo próprio imperador quando... Parou ao ser interrompido pelo brutamontes.
– Me deixe ver. Sua expressão e voz eram secas. Dimitri foi até a parte de trás da carroça e fez algum teatro ao manipulá-la como se tivesse em posse do Santo Graal. Em uma reverência estendeu a peça ao homem que, num movimento brusco, a pegou e começou a analisar.
– As condições não são as melhores. Retrucou.
– Veja, meu bom homem, há um longo caminho da mesa do imperador até vossas mãos, claro que a curadoria do vendedor deve ser valorizada, imagine só se... Novamente havia sido interrompido.
– Pago 50 moedas.
– Devo lamentar que a oferta de nosso intermediário era clara sobre as 100 peças de ouro...
– 100?! Exclamou, os bigodes se projetando para a frente e os ombros se tencionando para cima. É claro que tenho o valor e que esse copo merece ser utilizado por mim, mas não faça graça. Puxou um saco de moedas do bolso e o entregou a Dimitri de maneira ríspida.
– Insisto e lamento minha reincidente insolência, mas o que diriam seus subordinados se soubessem que a taça do senhor Radomir valeu apenas 50 moedas. Estava aflito e sentia a iminência de um pesado soco caso o pressionasse demais, mas tinha que arriscar. O homem tencionou ainda mais os ombros, parecia crescer diante dos seus olhos.
– Realmente insolente! Vou garantir que ninguém mais aqui faça negócios com você ou seu maldito intermediador. Vá embora antes que eu quebre o pescoço de um dos seus cavalos!
– Foi um prazer fazer negócios convosco. Disse enquanto segurava um choro de desespero ao ver o homem ir embora. Guardou o dinheiro na carroça, a reposicionou e partiu de volta.
Desolado. Culpava-se sem nem saber pelo quê. Sua única função havia falhado, novamente. Lágrimas caiam enquanto os cavalos puxavam a carroça em ritmo lento. Maldizia seu fracasso na missão e sua falta de força. 50 moedas não eram suficientes, o que fez não era suficiente, mais uma vez insuficiente. Lembrou de sua missão oculta – ou talvez fosse a principal – e alinhou os cavalos para que chegassem ao acampamento, tal como havia planejado. Olhou para o céu buscando as estrelas, mas não podia vê-las naquela hora do dia. Retirou um pequeno frasco do bolso e o segurou em uma das mãos. Tremia e soluçava ao abrir. Enquanto se certificava que os cavalos chegariam sozinhos ao destino, lhe veio novamente a imagem das 50 moedas, então do acampamento e por fim de Ileana. O pranto era levado pelo vento e o líquido esverdeado do frasco derramava com o movimento da carroça. Não podia acabar assim, sentia que precisava fazer mais, tinha que fazer mais. Guardou novamente o frasco no bolso, lamuriando ter falhado nas duas missões. Seu corpo estava exausto e não pôde conter o cansaço que o conduziu a um sono profundo.
Dimitri acordou com um conhecido som de música cigana ao se aproximar do acampamento. Por fim, ao menos os cavalos tiveram êxito. Não soube como se equilibrou no assento da carroça ou quanto tempo havia se passado, mas estava de volta. Anoitecia e parecia haver uma animada festa. Parou perto de sua casa, cuja porta havia sido fechada. Saiu lentamente da carroça e se dirigiu à entrada, empurrando-a para abrir. Sentia seus membros pesarem o dobro e chegou a olhar em direção àqueles que dançavam com a música. Quando se voltou à porta, ouviu um gemido próximo. Por um momento pensou estar delirando ou, mesmo que não estivesse, que não poderia fazer muito mais naquele dia. O gemido se tornou um grito abafado de dor acompanhado de uma respiração vacilante. Seu corpo entrou em alerta e então começou a procurar de onde vinham os sons.
Passou pelos cavalos e há alguns metros dali a encontrou. Era uma mulher de longos cabelos pretos com as maçãs do rosto caracteristicamente cavadas. Estava deitada, ferida e com distintas vestes rasgadas. Dimitri se questionou como uma nobre havia chegado ali naquele estado. Uma de suas hipóteses era a fuga de uma árdua luta, pois havia marcas de arranhões. Ela se esgueirou em sua direção estendendo a mão. Parecia fraca, muito aquém do que quer que pudesse ser. De sua boca saiu algo que não pôde compreender e, num ato de impulso, a tomou nos braços e a levou para o centro do acampamento. Não podia dar a assistência que ela precisava, mas podia fazer algo. Chegou próximo à fogueira quando a música cessou abruptamente e todos pararam para ver. Alguém gritou e Ileana correu ao seu encontro. Vozes começaram a surgir por todo lado e o vento balançava as chamas diante deles.
Não podia conter mais o corpo em seus braços, então se agachou segurando-a em seu colo. Foi ali que seus olhos se encontraram pela primeira vez: no calor do fogo e ambos em suas fragilidades. O instante durou segundos, pois ela logo desfaleceu. Entretanto, ele continuou a olhando sem entender o que estava acontecendo ali. O barulho era alto e confuso e Ileana balançava Dimitri. Eventualmente ele percebeu e respondeu pedindo que o ajudasse. Reuniu as últimas forças para erguer a mulher e ambos a carregaram para a casa de Dimitri.
Com cuidado eles a deitaram em sua cama. Dimitri tratou de aquecer um pano e limpar suas feridas e Ileana trocou suas vestes rasgadas por uma das suas. Ele estava preocupado e tinha a mesma tenacidade demonstrada ao realizar uma missão. Poderia aquela nobre ajudá-los? Por que não conseguia parar de olhar para ela? A cigana notou Dimitri compenetrado e se dirigiu a ele em voz baixa:
– Querido, estou feliz que voltou. A frase foi como uma faca cortante que o trouxe de volta à realidade.
– Eu falhei… Disse encarando-a visivelmente cansado. Só consegui 50…
– Shh… Você voltou, está aqui. Não falhou comigo… e nem com ela. Disse apontando o nariz para a estranha. Tome, vai precisar disso aqui. Ileana lhe devolveu o relógio de bolso com um olhar de malícia. Sabe… Eu sonhei com você mais uma vez na noite passada. No sonho você morria, mas continuava exuberante. A carroça ainda era puxada por dois corvos gigantes, mas dessa vez eles faziam sua carroça voar pelo céu azul. E ao seu lado estava o cadáver de uma jovem de cabelos negros. Descanse querido, amanhã vai nascer outro dia.
Dimitri adormeceu no chão, ao lado da mulher e, mesmo confuso, de algumas coisas estava certo: a guerra havia finalmente chegado ao acampamento; não havia falhado na missão de abraçar a morte e jamais faria outra viagem sob a luz do sol.