sábado, 25 de fevereiro de 2023

A garota da praia

 

Foi em uma manhã entre os meses de junho e julho quando decidi repousar em uma praia. Era um dia calmo em que as ondas quebravam baixo e um pedra pareceu bastante convidativa para sustentar um corpo cansado em busca de um cochilo. Fechei os olhos e, em um instante, o Deus dos Sonhos me agraciou com sua areia.

            São ruínas de um castelo na encosta do mar, que revolto, golpeia as paredes rochosas. Um ponto branco se destaca, corre em direção ao penhasco e se lança. Uma fita se desprende do vestido de renda e plana no ar. Atrás um relógio gigante surge eclipsando a noite, seus ponteiros giram enlouquecidos e em seu interior um garoto de cabelos longos corre por uma rua de ladrilhos. Então tropeça e cai para fora do relógio: a cena se torna a queda da maçã de Newton. Porém o encontro não é com a grama do solo, tampouco com as rochas ao pé da montanha, mas com a terra de uma pequena ilha. Naufragado, vê o castelo lá de baixo, em uma mão a fita branca, na outra um relógio de bolso. A ilha começa a afundar e o garoto a rezar uma promessa. Segura os objetos com firmeza junto ao peito. Apenas as torres frontais do castelo podem ser vistas. Tudo começa a flutuar e um gosto salgado alcança a língua do garoto. Os olhos marejaram e o ar acaba.

            Acordei com uma onda que alcançara meu rosto. Atônito, tentei respirar o mais fundo que conseguia. O mar havia subido até a altura da pedra que me reconfortava e minhas roupas ficaram molhadas. O sol estava a pino e havia areia em meu rosto. Não poderia imaginar que o mar chegaria até ali, assim como jurava que estava sozinho naquela praia.

Tentei logo me recompor quando notei que havia uma garota que caminhava na praia pegando conchas trazidas pelas ondas. Seus pés descalços deixavam rastros na areia molhada. Seu passo era rápido, mas não agitado ou apressado, assim como o vento que, livre, pode percorrer velozmente longas distâncias se assim desejar. Se continuasse naquele ritmo e naquela direção, inevitavelmente, logo me alcançaria. Contudo, justo quando eu esperava, ela parou e se demorou há alguns metros do meu corpo. Me olhou e, vendo que eu a olhava de volta, apontou para o que julguei ser o horizonte ou talvez fosse para o mar. Imagino que minha expressão desconcertada a tenha trazido júbilo, pois sorriu. Era um sorriso especial que combinava dentes bonitos com a expressão de um afeto que transitava entre a ludicidade juvenil e a malícia burlesca.

Sem que tivesse sido solicitado, me justifiquei: falei sobre estar dormindo e ter sonhado, acordando com a água no rosto. Foi nesse momento que ela se aproximou e se agachou para prestar atenção no que eu dizia. Ao se inclinar, ficou pendurado em seu pescoço um colar feito da junção folhas, cipós e pequenas flores. Seu dorso era bastante delineado, o que para mim lhe conferia um charme singular. Ela me perguntou sobre o sonho e, mais tarde, quando lembrou de um sonho seu, sentou ao meu lado para contar. Nesse instante não pude deixar de reparar no desenho de um castelo em um de seus braços. Uma construção sólida contornada por um delicado pé de amora. Logo meu juízo se perdeu nas figuras oníricas de seu relato. Intrigado, lhe fiz uma série de perguntas, as quais foram seguidas de respostas e novas questões.

Neste pequeno espaço da praia viajamos o mundo, questionamos a origem da vida e a existência do bem e do mal. Descobrimos o segredo do universo para no minuto seguinte rirmos de tamanha audácia e ingenuidade. Falamos sobre nós, sobre a solidão e sobre o amor. E desenhamos na areia as expressões mais íntimas de nosso inconsciente. Foi então que paramos para ouvir o som das ondas. O mar estava calmo, então percebi que sua voz aveludada me passava a mesma sensação de calmaria. Paradoxalmente, não transmitia apenas calma, pois o veludo é tecido que conforta, mas também esquenta. De alguma forma aquela voz era capaz de atingir uma frequência de ondas que podia ser ouvida de dentro: a garota falava pra mim, mas também falava comigo. Ali nos encontramos e foram os olhos que fizeram a mediação. Os dela eram levemente amendoados, da mesma cor dos meus, e em seu interior brilhavam chamas. Nos olhamos, mas tenho certeza que vimos muito além dos sentidos, algo que não consigo explicar com palavras. Nos amamos com a profundidade do oceano, eu e a garota da praia.

            Acariciei seu rosto e ela me beijou. Então levantou e mais uma vez apontou para o horizonte, que entardecia. Ela sorriu o sorriso mais doce e voltou a andar na praia. Corri para procurar meu caderno de bolso e só ao segurá-lo nas mãos lembrei que havia sido molhado horas atrás. Mas precisava escrever as palavras que saltitavam em meu coração. Olhei para os desenhos na areia e, com a ponta do dedo, escrevi ao lado, com a mais bela grafia que a motricidade me permitia:

 Já não tenho que fazer juras se me encontro junto de ti. 

Era hora do sol se pôr. O som das ondas ecoava dentro e fora de mim. Meus olhos marejaram, respirei e senti o ar em todo meu corpo. Sorri assistindo a noite chegar.

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