Voava cansado o elfo mais novo, o horizonte cada
vez mais alaranjado. Seria o crepúsculo daquele dia o presságio do fim.
Apenas voava, em direção reta, olhos muito fixos no
além-mar, nada podia contê-lo. Pequenos rastros de vento ficavam para trás com
os movimentos rápidos e curtos das batidas de suas asas.
Sentiu um aperto no peito que o fez cambalear, mas
seguiu ignorando. Nesta região, as nuvens haviam se tornado mais densas e
escuras e foi quando, mais adiante, uma tempestade que se formava o obrigou a
não ignorar mais nada.
Chovia forte e as densas nuvens exigiam que o
destemido elfo ziguezagueace pelo ar. Manobras rápidas e precisas o levavam em
direção a um destino que já não podia mais ver. Quando fixava os olhos a sua
frente apenas borrões acinzentados se misturavam ao escuro do anoitecer.
A pressão da chuva o compeliu a manter os braços a
frente do rosto. Tentava se proteger, mas, naquela velocidade, cada gota era
como uma lâmina afiada. Ao longe se ouvia um ronco no céu. Irado, lançava raios
cujas descargas atingiam violentamente o chão abaixo. Um destes irrompeu poucos
metros à frente do elfo, que viu uma árvore ser atingida e arder em chamas,
mesmo da altura em que voava.
No entanto, sem que tivesse tempo para se recuperar
do susto, o raio seguinte fora mais certeiro e atravessou a asa esquerda do
elfo. Já não podia mais movê-la. Por mais que insistisse e se esforçasse, a asa
simplesmente ficava aberta, inerte, disfuncional... rompida.
Uma súbita sensação de urgência tomou conta do
elfo, sua outra asa batia freneticamente criando tons azulados no ar. Como uma
estrela cadente, o acinzentado azul anil podia ser visto de longe, sucumbindo.
Braços e pernas se sacodiam e nem mesmo todo esforço necessário evitaria a
queda do elfo.
Ao contrário do que imaginava, sua queda foi lenta,
gradual. Talvez a asa direita tivesse encontrado uma forma de aumentar a
resistência do ar, talvez fosse apenas a sensação de que tudo a sua volta
estava parando no tempo. Tentava olhar a frente, mas os clarões dos novos
trovões mostravam agora o escuro horizonte de uma noite sem lua.
-Eu tinha tanto a fazer! Gritava e repetia.
Não é possível dizer quanto tempo transcorreu até
que atingisse o solo. A chuva havia passado e todo seu corpo doía. Sentia
cheiro de terra, mas o gosto em sua boca era de sangue. Não podia se mover.
Era madrugada e um vento frio o fez recobrar
parcialmente a consciência. Tentou olhar em volta e reconheceu pela vegetação
um lugar familiar, ainda que não tivesse certeza qual era. Tentou se levantar,
mas, sem sucesso, permaneceu em solo úmido. Um conjunto de vagalumes passou
diante de seus olhos. Sua dança hipnotizante fez o elfo mais novo alucinar e de
repente viu dragões em volta de um castelo. Tudo desapareceu nos minutos
seguintes. Seus olhos estavam cansados e então mais uma vez adormeceu.
Do silêncio absoluto começou a ouvir grilos e sapos
orquestrando um tema e uma sensação de calor preenchia sua pele ferida.
-Por que você faz isso? Perguntou o elfo mais velho
sem resposta.
A pergunta chegou aos ouvidos do elfo mais novo
como uma melodia rouca e revigorante. Aquele tom, aquela prosódia... Não sabia
onde estava, mas sabia que era seguro. Tentou se levantar e olhar em volta: no
tronco de uma árvore se encontrava uma confortável morada. A grossa casca
guardava do frio e concedia proteção. Não sabia como havia sido feito aquele
buraco, mas tinha certeza que a morada e seu morador estavam em perfeita
sintonia. Folhas cobriam o chão e pequeninos galhos forravam uma cama onde o
elfo mais novo repousava. Enquanto reparava, novamente a melodia preencheu seu
interior:
-Naquele dia eu decidi fazer um caminho diferente
para casa. Estava olhando pra cima, seguindo uma estrela brilhante, e de
repente me deparei com um corpo. Se aproximando do elfo mais novo, prosseguiu:
-Sabe o que é mais interessante? Você chegou por
conta própria. Eu até me assustei quando te vi aqui. Nesse momento franziu o
nariz e continuou. Foram três dias, sempre que passava por lá te dava água e
algumas folhas de courama-vermelha amassadas, parece que fizeram efeito. Bom,
efeito para o seu corpo né, não sei quanto a sua mente. Por que você fala
dormindo? Quer dizer, são tantas histórias, uma mais louca que a outra, acho
divertido. Nesse momento sorria com uma graça única aos olhos do elfo mais
novo, que neste momento conseguiu falar.
-Você realmente não sabe como eu cheguei
aqui?
-Você realmente não lembra? Retrucou.
O fato de conseguir falar o surpreendeu, mas não
mais do que o de ter ido até o lar de alguém sem um único registro.
-Tá se perguntando sobre o motivo de ter vindo
parar justamente na minha casa? Era como se tivesse lido a mente do outro elfo.
Olha, você pode ficar, tá tudo bem.
Confuso, o elfo mais novo se sentou e tentou
organizar os pensamentos. Sua cabeça ainda doía e não conseguia lembrar...
Subitamente seu pensamento foi interrompido por um clarão no céu e o som de um
trovão. Começou a tremer quando se deu conta do que havia acontecido. O elfo
mais velho então colocou a mão em seu ombro e disse firmemente:
-Estranhos são os mistérios e quente é o sol de
Icarus... Logo se levantou e se dirigiu a entrada do tronco. Como eu disse,
você pode ficar, sinta-se em casa. Até mais tarde. E saiu.
O elfo mais novo se deitou novamente e ao fechar os
olhos voltou a escutar os sons a sua volta. Era capaz de ouvir a madeira
envergando com o vento, assim como o som de sua respiração. Por um instante
pensou ter morrido e alcançado o além, ou mesmo que estava apenas sonhando
enquanto seu corpo jazia inconsciente em algum lugar. O tremor começava a
passar e as memórias a se tornarem turvas. O pio de uma coruja ecoo logo acima
de onde estava. Não havia nada a temer, nada a combinar ou conquistar.
Adormeceu.
Quando deu por si estava em meio a um campo de
girassóis, a grama muito verde e macia confortava seu corpo. Sua primeira visão
foi a de um elfo que dançava graciosamente entre as flores. O aroma do ar era
doce e delicado. Ao notar sua presença consciente, o elfo mais velho o tirou
para dançar. Sorria enquanto rodopiavam e saltavam de flor em flor. O elfo mais
novo logo estava rindo e dando cambalhotas no ar. Suas asas nunca estiveram tão
fortes.
-Sabe o que eu me pergunto, elfo? Iniciou o mais
velho. Por que lutar nos campos de batalha quanto podemos dançar num campo de
girassóis? Não vai me dizer que está pensando em escudos e espadas?
-Eu não sei. Respondeu o mais novo. Realmente não
sabia ou não precisava saber, simplesmente naquele momento não precisava fazer
sentido. Fechou os olhos e respirou profundamente. Foi quando os lábios dos
elfos se tocaram.
Quando abriu os olhos, estava deitado. O sol nascia
no horizonte. Seria o amanhecer daquele dia o presságio do início?
Nenhum comentário:
Postar um comentário