Crianças corriam pra lá e pra cá
enquanto um som ensurdecedor de sirene ecoava por todos os cantos do colégio. O
pátio externo fervia com o sol do meio dia e o marasmo atingia uma certa
criança que arrastava os pés enquanto andava em direção à saída.
Não reparou quando uma garota de
cabelos encaracolados passou pela sua frente, saltando sobre sua mochila de
rodinha para encontrar o pai que adentrara os portões para buscá-la. Não
reparou na figurinha amassada aos pés do bebedouro que era puxada e empurrada
aleatoriamente pelos pequenos pés que marchavam rumo à liberdade. Teria sido
uma figurinha rara? Àquela que completaria sua coleção? Jamais saberia... Não
reparou que neste dia em específico o vento dobrava ao sul, e não a oeste, como
de costume. Tampouco que seus movimentos lentos a deixavam pra trás, talvez
mais do que poderia imaginar.
Pouco a pouco o pátio foi se
esvaziando e apenas ecos vinham das salas de aula que agora jaziam obsoletas. O
ranger do portão externo fez-se ouvir: o relógio marcava 12h30 e o bedel fechou
um dos lados da saída, uma vez que a maioria dos alunos já havia partido... Não
fosse por uma criança, estarrecida em frente à saída, olhos fitando o solo
quente do asfalto por onde o carro de seus pais jamais passou.
Um professor de alta estatura se
aproximou da criança e acariciou seus cabelos, para logo em seguida sair
apressado e embarcar em um taxi. Após ele, a diretora, com sua costumeira
echarpe azul turquesa, atravessou o portão deixando um sorriso à criança. Logo
atrás, a professora de história, a “Tia da cantina”, o professor de artes e a Dona
Odete. Esta última, talvez uma professora dos anos mais tardios foi a única que
se deteve por um momento para conversar com a criança:
–Ei, onde estão seus pais? Disse ela de maneira empática.
–Eu não sei.
Não foi a resposta que a assustou, mas como cada palavra
havia sido enunciada: não havia afeto, não havia direção.
–Hum... Sempre te vejo aqui esperando, mas parece que já
passou algum tempo... Alguém está vindo te buscar?
–Eu não sei.
Novamente aquele tom, mas dessa vez cada palavra havia sido
escandida. Confusa, a mulher se abaixou e segurou nos ombros do menino.
–Você tá bem? Eu posso te ajudar? Tentou ela.
–Eu não sei...
Fora a primeira vez que a criança
dirigiu o olhar a Dona Odete e seu tom havia se tornado profundo, quase
reflexivo. A senhora deu um passo para trás, em seu rosto um misto de confusão
e desconforto. Assim, prosseguiu tirando uma nota de 10 do bolso:
–Olha, eu preciso ir, liga para os seus pais, daqui a pouco
o portão vai ser fechado.
Aflita, ela amassou o dinheiro na mão da criança.
–Se precisar, compra alguma coisa pra comer. Eu vou indo,
tá...? Adeus.
Dona Odete atravessou o portão apressada e desapareceu ao
cruzar a esquina.
O bedel, que até então não havia demonstrado interesse algum
na criança ou na cena que esta protagonizava, decidiu intervir:
–Olha, são meio dia e quarenta, você vai ficar aí o
dia todo? Eu tenho que ir embora.
Ele parou um instante para examinar o pátio agora vazio e
prosseguiu:
–Eu tenho criança pequena em casa... vou esperar mais 20
minutos, é o máximo que posso fazer por você.
Quando terminou de falar voltou à
inércia inicial. Mal reparou que não havia aguardado qualquer resposta de seu
interlocutor ou que mal havia o olhado. Talvez, se fosse mais atento, teria
visto uma lágrima no canto dos olhos da criança que se encontrava na mesma
posição: olhos no asfalto e a mão segurando a nota de 10.
O vento soprava por entre as grades do portão. 15 minutos
haviam se passado e o bedel, incomodado, resmungou:
–Escuta, eu vou ligar para os seus pais, você sabe o número?
Sem resposta, insistiu:
–Assim você não tá me ajudando, qual é o seu problema?!
Ainda sem resposta e agora mais exaltado prosseguiu:
–É o seguinte, eu vou fechar esse portão, vou lá em casa dar
comida pra menina e daqui 15 minutinhos eu venho abrir o portão. No caminho eu
vou passar no posto da polícia e mandar eles virem te ajudar, você me entendeu?
Cada parte de seu plano foi bem enfatizada, como se tentasse
ser o mais claro possível ou mesmo como se estivesse falando com alguém de
poucos recursos cognitivos.
A criança estremeceu e dirigiu um
olhar suplicante ao bedel. O adulto, por sua vez, ignorou qualquer sinal de
receio, trancou o portão e foi embora murmurando algo incompreensível. Do lugar
deixado vazio pelo bedel, dirigiu o olhar para o relógio na parede: os
ponteiros marcavam 16h00.
Batidas de coração se tornaram
audíveis, o suor molhava a amassada nota de 10 e o calor estava cada vez mais
intenso. A criança balançou a cabeça a apertou os olhos para tentar ver com
mais clareza: 16h01, não havia dúvida. Duas reviradas no estômago, cambaleou e se
sentou junto ao portão. 16h07, os minutos passavam depressa. A respiração se
tornou pesada, vacilante. Mais duas olhadas no relógio: 09, 10, 11.
Os tempos haviam sido difíceis, era
verdade. Não sentia mais tanta vontade de brincar como antes, era verdade
também, mas isso era diferente de tudo.
–Eu lembro... Era meio dia... Ele disse que voltaria...
A voz vinha da cabeça e tinha como endereço a própria
cabeça. A criança apertava a nota contra os dedos. Seu corpo estava rígido.
Olhava para o pátio rastreando qualquer coisa. Uma caneta perdida, a porta do
banheiro aberta, a bola de vôlei. Qualquer coisa.
–Eu quero ir embora! Tá tarde...
16h34. Sentiu uma urgência de
fazer algo. Pular o muro? Alto demais. A saída de carros? Fechava 12h00. Mas
mesmo se saísse? Perambularia até sua casa? Não... Não iria... Sabia que
ultimamente não tinha energia nem para correr no recreio, que dirá fazer todo o
trajeto a pé.
Sua visão ficou turva. Não sentia
fome, mas poderia estar há muito tempo sem comer. Não fazia sentido, como
ninguém passava na rua? Como ninguém deu falta? Quanto mais pensava mais escura
ficava sua visão. Sentia que o colégio estava sumindo pouco a pouco. Já não via
as portas da sala de aula e do pátio restou apenas a metade. O lado de fora do
portão se tornou um mundo à parte, distante e inatingível. Checou o relógio:
17h00.
–Agora eu... vou ter que ficar aqui?
–Amanhã todo mundo vai chegar.
–Amanhã?
–Eles vão vir
amanhã e tudo vai ficar bem.
–Amanhã?
–Amanhã...
Subitamente esta palavra lhe causou
ânsia. 17h05. As entranhas foram se contorcendo e a palavra “amanhã” ecoava initerruptamente
na cabeça da criança. Este impulso poderoso lhe fez se levantar e correr o mais
rápido que pôde. Não tinha visão periférica, apenas borrões paralelos ao seu
caminho que tinha a porta do banheiro como destino. Aos poucos o restante do
pátio foi se tornando visível novamente, assim como a pia amarelada do
banheiro.
Se debruçou sobre a pia, mas suas
pernas cederam. Estava pendurado pelos braços quando preencheu a cuba de
vômito. Sua visão se tornou ainda mais confusa e uma vertigem impediu qualquer
clareza perceptiva. A cada movimento peristáltico pensamentos soltos se
sobrepunha uns sobre os outros:
–Eu não podia...
–Tive que correr...
–Amanhã...
–Ninguém percebeu!
–Eu não quero ficar aqui...
–Cadê a profe?
–Ele não voltou.
–Cadê todo mundo.
–Eu não quero.
–Amanhã é muito longe!
O som do ponteiro do relógio se
tornou alto suficiente para ser ouvido de onde estava. O odor era claro, mas em
sua percepção o conteúdo era vermelho. O que estaria acontecendo? As batidas do
coração criavam um ritmo único com as do relógio.
Se sentia fraco e agora nem seus
braços poderiam mantê-lo em posição vertical. No chão tentou se arrastar até o
portão. Tão distante, tão inalcançável. Sua mão direita, utilizando
as ultimas forças, se esticava em direção às grades como se magicamente pudesse
alcança-las sem precisar se deslocar.
Os sons se confundiam com as
imagens. O solo do pátio era quente e áspero. Apenas um objetivo, apenas alguns
metros, apenas mais um pouco de tempo, apenas mais um esforço. Contudo, foram
apenas centímetros e logo a volição deixou seu corpo já bastante desgastado
pelo momento. As piscadas foram se tornando longas e contínuas. Mais alguns
centímetros e sentia o concreto ferir seus membros débeis.
Três toques do relógio, os
derradeiros. Sua cabeça cedeu e encostou no calor do pátio do colégio.
A polícia chegou ao local
combinado acompanhada do bedel que, apressado, mal conseguiu encontrar a chave
certa em meio ao molho. Quando as grades finalmente se abriram, revelaram um
menino deitado abaixo do relógio, há poucos passos do portão, sua cabeça estava
voltada para o céu ensolarado. A camiseta de seu uniforme, antes branca, estava
ensopada e se tornara rubra. Os ponteiros marcavam 13h30.
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