segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

A ópera de Saturno

 

Corri o tanto que meus pés aguentavam, talvez mais, com certeza mais. Podia ouvir o som agudo vibrando meus tímpanos: alto e penetrante, o violino de Saturnália. A melodia me guiava para aquilo que acreditava ser um fio de liberdade, um sopro de vida, uma possibilidade de fuga de meu cativeiro. Estava descalço e o asfalto estava quente e áspero. Talvez pudesse correr mais se não sentisse meus membros tão débeis pela alimentação inapropriada.

A cidade estava enfeitada de verde e vermelho, mas eu não estava prestando atenção ao meu redor. Apenas corria como se cada passo seguisse o compasso da melodia em meus ouvidos. O som se tornou agudo, então fechei os olhos por alguns segundos, como se tentasse capturar sua beleza e retirar dali força e determinação para prosseguir. Não era um problema fechar os olhos, a grande cicatriz em meu olho direito me conferia uma visão quase monocular. Maldito dia em que senti o couro tocar meu corpo e dilacerar minha pele. Eu que sempre mantive preocupações de estética apolínea me tornara um monstro.

Atravessei a praça principal quando senti as forças se esvaindo e, num tropeço, levei os braços a frente. Confiei minha proteção a eles. Me senti tolo, traído, pois não foram capazes de me sustentar. Tinha o úmero esquerdo parcialmente fraturado e, no braço direito, uma urticária havia deixando bons hematomas que tornavam o membro mais frágil do que deveria. Durante a queda me lembrei dos dois dias preso à cama, um braço pra frente do corpo e o outro pra trás. Não era preciso qualquer exame para saber que a postura havia afetado o braço esquerdo mais do que eu gostaria. Senti o asfalto ralando meu rosto durante a queda enquanto música assumiu um ritmo calmo, como se orquestrasse a cena. Algumas pessoas olharam, não reparei ou não quis reparar. Não podia lidar com aquilo naquele momento. Deixei no chão algumas lágrimas, então levantei e prossegui.

Já havia atravessado o centro e a parte velha da cidade, podia sentir o cheiro do campo de onde estava. Nesta altura, a canção acelerou o ritmo, tal como o chamado de uma criança para brincar. Senti a energia me contagiando e nem a coceira no braço podia me distrair. Há meses sofria por conta de uma alergia causada pelas pesadas cobertas de lã. No começo vermelhidão, depois o inchaço e então os vergões. Não importava, não precisava do braço agora, estava perto.

O perímetro urbano chegou ao fim, sentia o cheiro da casca das árvores, mas havia algo estranho. Há alguns minutos notara que o som do violino havia parado e o zunido do silêncio parecia ainda mais alto em meus ouvidos. Olhei em volta procurando por respostas, como se elas pudessem estar ali, visíveis. Nada. Ao longe ouvi uma risada de criança. Não, era um riso etéreo, quase sobrenatural, que ecoava. Não poderia ser de uma criança. Lembrei das seguidas noites na biblioteca estudando as lendas da região. Bruxas, duendes, fadas, desaparecimentos, sons inexplicáveis. Li detalhadamente cada escrito que citasse o mês de dezembro e relatasse som de violino. Eu conhecia a lenda, todos conheciam, mas a maioria julgava tolo demais acreditar em “histórias da Carochinha”. Pra mim era real, tinha que ser real... temia que não fosse. Muito se dizia sobre uma fada que tocava violino nessa época do ano. Alguns temiam suas armadilhas, outros mencionavam que era mal agouro ouvir sua música, mas foi uma carta que realmente despertou minha atenção e transformou minha esperança em obsessão pela história. Estava no meio de um desses livros, dobrada quatro vezes e escrita numa letra cursiva e vacilante. Mencionava um lugar na floresta ambientado por sons de flauta e tambor onde era possível ser livre. O tom da carta era lamurioso e terminava dizendo que não tivera a mesma coragem da amiga, que já não via há anos. Voltei a mim quando a risada ficou mais próxima.

Voltei a correr, não mais seguindo o som do violino, que cessara por completo, mas a risada fantasmagórica. O som vinha de um arbusto mais adiante na mata, onde o ar se tornava frio e a floresta escura. Por um instante olhei para trás e não reconheci o caminho antes percorrido, mas apenas ignorei o frio na espinha que isso me causou. Ao chegar no arbusto vi dois pés pequenos que tentavam com pouco esforço se esconder. Então, dois braços saíram da folhagem, estendidos, como se pedissem um abraço. Não conseguia entender e, por um momento, temi estar errado. Talvez estivessem certos aqueles que pediam cautela e que se evitasse a floresta em dezembro. Antes que eu pudesse reagir os braços me puxaram. Eram fortes demais para ser de uma criança e o arbusto grande demais para ser real. Cai durante alguns minutos sem conseguir enxergar o que estava ao meu redor e quando meu corpo tocou o que quer que fosse o chão o medo tomou conta de mim.

Ouvi risadas de crianças, homens e mulheres, gritos, ofensas e estalos. A melodia do violino ressurgiu, mas não era a mesma: seu ritmo era intenso e caótico, tão agudo que feria minha mente. Tateei em volta procurando por qualquer coisa que pudesse me ajudar, mas a dor no braço era lacerante e dificultava o processo. “Então você gosta de brincar?”. Foi o que escutei sem saber de onde. Devia ser ela, sentia isso tanto quanto sentia que meu fim estava próximo. Então a voz continuou “Uma pena que vocês não sabem brincar”. O tom desta vez foi gélido como a floresta, quase ameaçador, ainda que de uma doçura inexplicável. Foi então que ela se aproximou ou pelo menos foi quando a vi se aproximar. Era pequena, estava descalça e sua pele era cintilante. A cabeleira encaracolada batia com a descrição da lenda e apoiado no ombro estava ele, com sua madeira tingida de vermelho sangue, o violino. Podia ver ela tocar habilidosamente, sem o menor esforço. Não acreditava que havia finalmente a encontrado, senti um misto de satisfação e terror. Ainda me esforçava para alcançar algo para me defender e talvez fora a dor em minha expressão que a fez parar de tocar a música. Ela chegou muito perto do meu rosto, havia agora curiosidade. Seus grandes olhos me estudaram por alguns instantes e então ela se sentou na escuridão.

– Intrigante. Disse ela. Tem algo em você que é intrigante.

Não consegui responder, todo meu corpo tremia. Ela fez um gesto como se me pedisse para se aproximar, o que obedeci prontamente me rastejando como pude. Ela segurou meu rosto com a mão enquanto a outra percorria o cavanhaque em meu queixo.

– Você cheira como eles, se veste como eles, parece com eles... Parou enquanto analisava detalhadamente o cavanhaque, então prosseguiu. Mas não é um deles! Seu grito macabro acompanhou a mão que arrancou metade dos pelos. Gritei em seguida, meus olhos reviraram de dor. Não consegui mais sustentar meu corpo deixando-o cair ao lado da violista de Saturnália. Estava esgotado, entregue e disse a única coisa que podia: “por favor”. Não lembro exatamente o que aconteceu depois. Vi vultos, mas talvez fosse apenas ela que andava ao meu redor como se decidisse o que fazer comigo. Senti meu corpo sendo puxado e então encostado em uma árvore e demorei até conseguir recobrar a consciência.

Acordei em uma clareira na floresta sentindo o calor da chama de uma fogueira. Havia um falatório e também música. Esta era bem diferente das anteriores, era festiva e alegre, composta por tambores, flautas e violino. Com algumas piscadas de olho notei uma série de pequenos seres de pele cintilante e cabelo colorido. Nada do que havia lido chegava perto da imagem que estava diante de mim. Logo, pendurado de ponta cabeça na árvore onde eu estava, uma fada desceu até a altura dos meus olhos e anunciou que eu havia acordado. Todos gritaram em tom de comemoração e pude ver a violinista no centro me encarando compenetradamente. Ela se aproximou e os tambores aumentaram o ritmo.

-Por favor...? De maneira desconcertante sua voz era luxuriosa, assim como seus movimentos. Pois então cederei ao solene pedido do cavalheiro. Continuou ela. Então, com um gesto de sua mão, senti meu braço esquerdo sendo levantado contra minha vontade. A dor que senti em seguida foi pior do que a anterior, quando ela me havia arrancado parte do cavanhaque. O osso quebrado do meu braço simplesmente deslizou para fora rasgando a carne frágil. A violista sorria docemente, parecia aproveitar cada instante daquele momento. Eu estava suando, não podia mais mexer aquele braço e, antes de me dar conta do que estava acontecendo, era o outro braço que levantava agora. Meus olhos assistiam amedrontados o que viria. Com outro gesto, ela apontou para os vergões pestilentos que, um a um, se descolaram da minha pele deixando a carne exposta. Várias fadas urraram e outras riam e eu não conseguia mais suportar a dor.

– Agora só falta uma coisa. Disse a violinista se aproximando de meu rosto com um sorriso demoníaco. Levantou a mão com um movimento de pinça e, de uma forma que não se explicar, puxou a cicatriz do meu olho como se esta fosse apenas uma sutura malfeita. O que estava em sua mão me lembrava um verme amassado e seco e agora era meu olho que doía como se uma parte da pele tivesse sido arrancada. Talvez realmente tivesse sido. Cai de lado me contorcendo de dor e maldizendo minha vida. Lembrei de cada agonia, cada lágrima e cada aflição que senti enquanto repetia baixinho, em meio a soluços, “por favor, por favor, por favor”.

Duas fadas se aproximaram de mim e me levantaram... aquele seria o golpe fatal. Elas me seguraram pela cintura enquanto a violinista começou a fazer gestos que mais lembravam uma dança. Diante dos meus olhos vi meu osso arrancado se alongar, aumentando, ganhando contornos e curvas e, de repente, tomando a forma de um violoncelo. Um belo violoncelo branco como o marfim e resistente como o osso que fora. Em seguida os vergões colados a restos de pele flutuaram em direção ao violoncelo, se alongando e assumindo o lugar das cordas. Um som grave ecoo pelo clarão quando o vento passou por elas. Por fim, do lugar onde estava no chão, vi minha abominável cicatriz tomar a forma de uma vareta que pairou pousando ao lado do violoncelo. A violinista de Saturnália parecia satisfeita, pude ver seu sorriso de dentes pontiagudos admirando a obra que realizara. Então se virou para mim e disse em tom amistoso:

– Estávamos precisando de um violoncelo, foi muito útil. Suas feições eram meigas, desconcertantemente contraditórias ao conjunto. Mas diga-me... Continuou ela. É isso mesmo que deseja? Posso pôr fim a sua dor agorinha!

Tonto e com muita dor tinha dificuldade de pensar e compreender o que estava acontecendo, mas tinha certeza, há muito tempo. Desejei com todas as minhas forças que tudo acabasse ali e fechei os olhos. Mal podia acreditar que estaria finalmente livre da dor – não, estaria realmente livre de tudo. Pude sentir a violista se aproximar e, mesmo de olhos fechados, notei um clarão surgir a minha frente, muito mais intenso do que a fogueira.

– Acho que você se equivocou, não posso dar o que deseja, você não merece... Havia deboche em sua fala. No entanto, insisto, posso pôr fim a sua agonia. Finalizou.

Abri os olhos e senti a região da cicatriz arder. As duas fadas me soltaram e a violinista me estendeu a mão. Cai no chão mais uma vez e pude notar que o clarão vinha de uma luz intensa, como fogo fátuo. Não era preciso ter lido todos aqueles livros para saber que se tratava de um círculo de fadas, essa era uma das crendices mais conhecidas naquele mundo. Porém, o círculo era real e a fada era real, assim como a história. Num lampejo me lembrei da carta. Seria possível, realmente, ser aquela a porta que tanto procurei? Ou seria apenas mais uma artimanha daquela fada das trevas para me desgraçar?

– Você é um tolo. Riu baixinho a violinista. Eu já estive nesta posição. Se abaixou do lado oposto do círculo enquanto mantinha a mão estendida. Eu já sofri a sua dor, cavalheiro. Por um instante achei que ela mesma havia se surpreendido com a frase que acabara de sair de sua boca. Posso te deixar aqui ou você pode vir com a gente. De qualquer jeito você conseguirá o que tanto busca. A morte é um conceito tão relativo. Disse estendendo as últimas vogais de maneira lúdica. Seus grandes olhos brilhavam.

Comecei a me arrastar em direção ao círculo. Apenas um braço me permitia o deslocamento. Me lembrei de onde morava, do frio, da lã pesada, da coceira. Mais alguns centímetros adiante. Me lembrei da cama, do colo não dado, das palavras de ódio. Meus dedos estavam se enterrando no chão para me puxar. Senti o calor do círculo tocar meu rosto. Me lembrei do espelho quebrado e a mão sangrando e de repente senti um cheiro delicioso de torta de maça. Há tantos anos não comia uma dessas, simplesmente a minha preferida. Após minha cabeça e pescoço, o resto do corpo começou a deslizar para dentro do círculo. Segurei a mão da violista, que apertou a minha de volta.

As fadas ficaram radiantes e gritando vivas e o calor da fogueira se tornou acolhedor. A violinista me puxou e pude ver meu braço se regenerando, vi o tecido se reparar e a pele adquirir uma coloração mágica. Em pé segurei preocupadamente o braço desossado, mas logo senti que aquilo não era mais um problema. Consegui me equilibrar e me manter firme ao chão, era como se todo meu corpo estivesse mudando e ficando mais leve. Os pelos do cavanhaque que ainda restavam caíram no chão e evaporaram e, neste instante, pude notar que as fadas me olhavam como a um igual. Notei que o cheiro não era de torta, mas sim do ar que havia se tornado não só leve, mas também doce ao meu olfato.

Olhei em volta procurando a violista que havia sumido quando a ouvi me chamar há alguns metros de onde estávamos. Ela apontou para um rio que cruzava a floresta e eu, sem entender, me abaixei para ver. Não era para o rio que ela apontava, era para o meu reflexo. Traços finos ganharam meu rosto e foi um sorriso pontiagudo que apareceu em minha boca quando notei estar livre da cicatriz. Estava hipnotizado pela imagem e só sai de lá quando ela me cutucou pela terceira vez e apontou para o violoncelo. Era o instrumento mais imponente que já havia visto e o mais perto que já havia chegado de qualquer instrumento musical. Ousei pegar, mas hesitei antes de conseguir. Foi a mão da violista que guiou a minha e que depois me entregou a vareta. Ela e algumas fadas que estavam perto se sentaram em volta pra ouvir. Eu não tinha ideia do que fazer, mas não temi. Me sentei em uma pedra e segurei o violoncelo. Era pesado, sólido como a própria terra aos meus pés. Posicionei a mão nas cordas e elevei a vareta.

Uma nota grave ressoo por toda floresta, chegando à vila e fazendo algumas aves voarem. Uma senhora que passava pela rua fez o sinal da cruz ao sentir um arrepio. Três crianças que brincavam na praça pararam para ouvir quando as outras notas chegaram e então começaram a dançar quando o som de um violino se uniu à melodia. Elas riam, tal qual as fadas da floresta naquela noite Saturnália. Vi a neve começar a cair e pela primeira vez um sentimento surgiu em mim: estava em casa.

 

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Leve

Trabalhava de maneira descuidada, pois sabia que em breve iria me demitir.
Me distraia em discussões acadêmicas, pois sabia que em breve não precisariam mais de mim.
Aproveitava a viagem de maneira única, pois sabia que em breve o avião iria partir.
Comia me preocupando apenas com a satisfação, pois sabia que em breve iria digerir.
Me machucava conforme minha vontade, pois sabia que em breve meu corpo iria reagir.
Lia despreocupado a última página do livro, pois sabia que em breve a história iria acabar ali.

A brevidade me surpreendia, como um peso que parecia deixar de existir.
Logo eu que tanto queria, passei a esperar pouco do que estava por vir.

Contava as horas como minutos em devir, pois sabia que em breve delas eu poderia prescindir.


segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Pergunta retórica

"Isso é estar feliz?" Rabiscava incessantemente estas palavras em seu caderno de bolso. Em meio a tantos registros detalhados e esquemas mentais essa página parecia caótica, delirante. Olhou pela janela, mas o véu da noite cobria tudo que tocava, não fosse por um feixe de luz que piscava ao longe. Se concentrou no estímulo apertando os olhos e franzindo a testa mais do que era preciso. De repente seus olhos percorreram quilômetros, atravessaram a grama verde e o rio que cruzava a vila. Pôde ver uma lamparina acessa do lado de fora de uma casa simples. Ao seu lado um senhor de longas barbas se inclinava para frente e para trás em movimentos repetidos numa cadeira de balanço. Seu coração batia lento, podia escutar, assim como a chama da vela que farfalhava ao sabor do vento. 

Essa sensação... Era incrível poder ver e ouvir desta forma. Lembrou dos anos passados quando ainda era humano, quando ainda precisava usar aqueles óculos redondos por necessidade e não por descrição. Talvez a visão do velho tenha lhe deixado nostálgico, quase lúgubre, o que parecia quase contraditório considerando o conteúdo da página do caderno aberta ao seu lado. Que paradoxal também lhe parecia o tempo daquela perspectiva... Desviou a atenção da luz e fechou os olhos. Ouviu som de arpa, passos apressados, colunas jônicas, um lenço preto deixado propositalmente sobre o móvel da sala. Se deu conta que até seu pensamento parecia aprimorado ou talvez sempre o fosse, mas não o tomava com clareza. 

Abriu os olhos e se levantou. Atravessou o corredor escuro e se dirigiu até a saída da casa. Ventava muito, mas nada que o incomodasse ou o desviasse da mesma pergunta que o colocara neste estado inquieto. Voltou a acompanhar a única pessoa que lhe fazia companhia naquela noite outonal. Desta nova posição podia ver mais detalhes. O senhor usava pijamas, parecendo bastante confortável. Sua expressão límpida poderia facilmente ser confundida com um cochilo, mas não havia como se enganar: o idoso também contemplava algo ou talvez esperasse por algo. Se perguntou o que pensaria alguém cujo fio da vida não passava de um findado novelo de lã. Por tantas vezes se sentiu assim, não por considerar que seu novelo estava prestes a acabar, mas por achar seu novelo impróprio ao tear a ponto de querer defenestra-lo a qualquer momento. Algo havia mudado... 

Depois daquela viagem para o oriente, depois do contato com aqueles mercadores, depois de ver a roda da carroça tão irreparavelmente quebrada, depois de visitar a Grande Biblioteca, depois... Seu fluxo de pensamento fora interrompido, pois havia se dado conta de que se passaram anos desde sua decisão de deixar a França. Uma brisa passou por seus cabelos e decidiu dar mais uma olhada no velho. Uma cicatriz se destacava em seu braço esquerdo. Talvez seja um otomano desertor, pensou. O tamanho e  o aspecto eram condizentes com perfuração de lâmina, uma perfuração antiga. Levou a mão ao pescoço e pressionou dois pequenos furos, quase imperceptíveis. Depois daquela noite - retomou o fluxo associativo de seu pensamento -, depois de provar seu sangue, depois de sentir o dela se misturar com o meu, depois de assumir a dupla jornada de vendedor e informante... Quanto havia acontecido nestes últimos anos... De repente achou sua vida interessante, digna de nota, talvez de uma história contada. Lembrou da viagem que fez a Paris quando era criança e pôde rememorar como se sentiu pequeno diante de Notre Dame: apenas um menino que tropeçava nas ruas de ladrilho com tantos sonhos guardados... O velho pareceu tentar se levantar, mas logo cambaleou de volta ao assento. A vela da lamparina mal podia se sustentar e, num movimento quase involuntário, estava ele ao lado de seu companheiro. 

Sem apresentações olhou para o senhor de maneira gentil e lhe perguntou:
-Isso é estar feliz? 
-Ah meu jovem... Começou ele a responder, mas parando por um momento antes de prosseguir, como se tomasse fôlego. Que pergunta mais ingênua. Não percebe quão retóricos podemos nos tornar diante da vida?

Não entendeu o sentido daquelas palavras, mas não quis interromper. Apenas ouviu:

-...ou quem sabe diante da morte. Ele olhou para a lamparina que agora iluminava quase nada e, sem lhe dirigir o olhar, prosseguiu. Acha que alcançou o que deseja? Ou acha essa também uma pergunta retórica?

O velho riu um riso abafado e cansado. Se recostou na cadeira e mirou o horizonte que pouco distinguia o céu da terra. Então, antes da vela terminar, Dimitri escutou as últimas batidas daquele coração. Parou por alguns instantes, reflexivo e ajeitou os óculos no rosto, até lembrar que os deixara ao lado do caderno de bolso, tendo apenas tocado a testa com o dedo indicador. Se sentou no chão, ao lado do velho, e olhou na mesma direção de sua derradeira visão. Enxergou a vasta planície e o caminho até Brasov. Viu uma revoada de pássaros e os primeiros indícios do sol que viria logo a apontar. Voltou para a casa, pegou um rolo de papel e tinta e redigiu uma carta relatando aquela noite. Este não era um informativo, era uma epístola a uma interlocutora estimada e carregava muito de seu sentimento. Havia adquirido este hábito de compartilhar, gostava de pensar que ela o lia como a um livro. Gostava da sensação que isso lhe trazia.

Sorriu enquanto escrevia as últimas linhas: sinto sua falta, draga mea. Dobrou o manuscrito e o colocou junto ao caderno de bolso. Fechou-o sem pestanejar e repetiu pra si mesmo: pergunta retórica?

domingo, 25 de agosto de 2024

Chame-me pelo meu nome

     Era um fato inegável: havia me apaixonado por uma bruxa. Percorria meus dedos por seu rosto enquanto constatava a verdade de meu coração. A pequena cabana em Donnelaith havia se tornado nosso refúgio e nem mesmo o frio escocês era capaz de abrandar a chama do meu desejo. Ainda conseguia ouvi-la proferir as palavras que contornaram as pedras e sacodiram as copas das árvores. Ainda podia sentir como era estar pela primeira vez em sua presença e como os olhos da pequena Deborah me olhavam com curiosidade. 

     Acompanhar seus dias se tornou minha função ou, para ser mais preciso, minha satisfação, minha discreta obsessão. A gratidão de cada um daqueles que curava era a mesma que a minha em vê-la curar. No entanto, foi quando senti seus lábios nos meus que estes pensamentos então se tornaram distantes. A tecitura temporal se distorcia nesses momentos, o que talvez se devesse ao fato de minha materialidade recém-adquirida neste mundo. Ainda havia muito a compreender, mas tinha certeza: eu amava Suzanne de May Fair. 

     Enquanto ela acariciava meu cabelo, sentia sua pele maliciosamente perfumada de unguento floral. Seu beijo, cada vez mais voraz, disfarçava um sorriso travesso que jamais me passaria desapercebido, nem mesmo em uma ocasião como essa. Me entreguei aos seus braços, repousando meu corpo sobre o dela. Amamo-nos enquanto ouvíamos o ranger das árvores que se curvavam do lado de fora da cabana. O burburinho local dizia que os ventos estavam incomuns ultimamente e nem mesmo os velhos carvalhos eram capazes de suportar tamanha força. Contudo, nada se compara à força das palavras que ouviria naquela noite, da bruxa de Donnelaith, sussurradas no ouvido: meu Lasher... Por uma fração de segundo pude admirar sua diabólica beleza e então perdi os sentidos.


quinta-feira, 6 de junho de 2024

Anacronismo

 

[19:05, 28/04/2024]
Minha querida amiga, quanto tempo demorei pra vir aqui te escrever, mas acredite: nem por um dia deixei de pensar em você. Ontem eu estava ouvindo seus áudios do Whatsapp, me bateu uma saudade! Como é bom ouvir o timbre da sua voz, ainda que doa te ouvir dizer como tava difícil no trabalho. Aqui no meu não tá muito fácil, mas não é nem isso... É como se algo tivesse acontecido na vida, algo que não sei explicar.

[19:07, 02/05/2024]
Não cheguei a te perguntar o que você acha de praias, desde pequeno tem algo no mar que me chama e parece que a voz tá cada vez mais alta. Comprei passagens para viajar, aliás, daqui dois meses estarei vendo as ondas. Tem tanta coisa que queria te contar.

[19:11, 18/05/2024]
Como ta por ai? Aquele dia a gente combinou de sair para comemorar e eu continuo esperando. No seu tempo... No seu tempo.

[18:59, 21/05/2024]
To aqui ouvindo seus áudios. Continuo achando um absurdo o que o palhaço fez. Literalmente. Esses dias vi uma série e lembrei de você, falando nisso.

[19:06, 06/06/2024]
Eu sinto como se tivesse uma porta aberta, sabe? Nunca tinha visto essa porta nesses anos. Acho muito interessante como a porta não é pra sair ou entrar, é só uma porta. Eu falo tanto pra você de ir embora, de querer achar um lugar pra mim. Fico pensando nas suas férias e em todas as vezes que me disse como tava cansada. Eu também tô cansado querida, esse lugar me cansa e eu vejo essa porta. Ela é iluminada, mas em volta é escuro. Claro que eu acho bonito, imagino que tenha dado pra notar meu gosto estético haha. Por falar nisso achei essa imagem. Por algum motivo me fez chorar. Me lembrei de quantas vezes fui embora, quantas vezes vi pessoas indo embora. Eu não gosto de despedidas e sei que minha questão é com o fim, com o capítulo final do livro. Nunca sei como acabar uma frase quando começo a falar, tem vezes que isso me faz sentir vergonha. Vou contar uma coisa que nunca contei pra ninguém... Sempre que chega perto o final de um livro eu olho o tanto de páginas e penso "não tem como essa história acabar nesse tanto de páginas". Me deixa muito intrigado pensar que já tá definido ali o fim de toda aquela história. O mesmo me acontece com séries e músicas. Com música chega a ser engraçado porque eu fico vendo o ponteiro chegando no final do marcador, pasmo como acaba sempre no lugar que foi definido pra acabar. A última nota no último segundo. Perfeito.

sábado, 25 de maio de 2024

Carta 34

 Meu amigo Allan,

Só agora pude ler sua carta e quantas sensações ela me trouxe. Não imagino como têm sido esses seus dias de adaptação. Mudar de cidade sempre me trouxe um temor antigo, quase inconsciente, e você sabe bem quantas vezes tive que me mudar. Às vezes em que penso em recomeços me lembro quando fui para aquela cidadezinha do interior. Quantas cartas naquele ano! E como foi importante tê-lo como companhia nas noites mais frias! Ontem estava arrumando a bagunça do consultório (como pode este lugar chegar a um estado tão caótico?) e encontrei aquele texto seu sobre sonhos. Eu comentei naquele dia que as primeiras frases, assim, se despedindo, concediam um ar todo melancólico que não me pareciam próprios de algo sobre sonhos. Pois hoje escrevo que não conseguiria pensar em introdução mais acertada. Ah, meu amigo, afinal sua tia estava certa, somos mais parecidos do que pensamos! E não falo dos olhos fundos de noites não dormidas. Esse jeito lacônico de se expressar, esse tom melodioso de ver, onde irá nos levar? Tenho tantas perguntas agora. Quando escreveu sobre os grãos de areia, pensava em pessoas ou nos próprios sonhos? Temo estar interpretando demais e neste momento quero sentir mais do que pensar. “Pensar usando os neurônios”, este pensar que estou evitando. Quero pensar com a mente, Allan, com a mente (será que está rindo ao ler esta frase? Eu estou). Veja, meu ponto é que os grãos de areia podem ser os próprios sonhos, tão dourados como o sol. Mais uma vez me vem sua tia falando, quase posso ouvir a voz dela me lembrando que havia esquecido de passar protetor solar. Aquelas férias de verão foram divertidas – mesmo com as costas queimadas. Somos tão jovens, o que foi feito de nós? Acha que sonhamos demais? Sonhamos porque temos esperança ou porque a perdemos em algum ponto da vida? Lembro quando me sentia feliz, mas não é como esse momento tivesse existido de verdade. Também não é como se não estivesse feliz anteontem comemorando as primeiras rosas da primavera. Sinto-me velho Allan, esquecido pelos meus próprios sequestradores que se cansaram de cativeirar e simplesmente partiram. Catatônico, sonho com a liberdade já concedida a mim. Sinto que meus membros se atrofiaram pelo ostracismo e agora que desejo me mover apenas não posso mais. Lembro quando cheguei naquela cidade gelada, o sol não aquecia, eu não tinha sonhos ou esperança. Não precisava de protetor solar. Quantos beijos na testa já dei nessa vida, quantas partidas.

Talvez isso seja só minha tristeza.

Um abraço meu amigo,
DRS

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Uma linha contínua

Sons vindos de Venus que orbita o íntimo do nosso espaço. 

Atmosfera circular que transita, formando um traço.

Saturno, com anéis, dançando no mesmo passo.

Gravidade ideal, envolta como que em um abraço.

Medida em anos luz, trajetória continua: um laço.