sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Leve

Trabalhava de maneira descuidada, pois sabia que em breve iria me demitir.
Me distraia em discussões acadêmicas, pois sabia que em breve não precisariam mais de mim.
Aproveitava a viagem de maneira única, pois sabia que em breve o avião iria partir.
Comia me preocupando apenas com a satisfação, pois sabia que em breve iria digerir.
Me machucava conforme minha vontade, pois sabia que em breve meu corpo iria reagir.
Lia despreocupado a última página do livro, pois sabia que em breve a história iria acabar ali.

A brevidade me surpreendia, como um peso que parecia deixar de existir.
Logo eu que tanto queria, passei a esperar pouco do que estava por vir.

Contava as horas como minutos em devir, pois sabia que em breve delas eu poderia prescindir.


segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Pergunta retórica

"Isso é estar feliz?" Rabiscava incessantemente estas palavras em seu caderno de bolso. Em meio a tantos registros detalhados e esquemas mentais essa página parecia caótica, delirante. Olhou pela janela, mas o véu da noite cobria tudo que tocava, não fosse por um feixe de luz que piscava ao longe. Se concentrou no estímulo apertando os olhos e franzindo a testa mais do que era preciso. De repente seus olhos percorreram quilômetros, atravessaram a grama verde e o rio que cruzava a vila. Pôde ver uma lamparina acessa do lado de fora de uma casa simples. Ao seu lado um senhor de longas barbas se inclinava para frente e para trás em movimentos repetidos numa cadeira de balanço. Seu coração batia lento, podia escutar, assim como a chama da vela que farfalhava ao sabor do vento. 

Essa sensação... Era incrível poder ver e ouvir desta forma. Lembrou dos anos passados quando ainda era humano, quando ainda precisava usar aqueles óculos redondos por necessidade e não por descrição. Talvez a visão do velho tenha lhe deixado nostálgico, quase lúgubre, o que parecia quase contraditório considerando o conteúdo da página do caderno aberta ao seu lado. Que paradoxal também lhe parecia o tempo daquela perspectiva... Desviou a atenção da luz e fechou os olhos. Ouviu som de arpa, passos apressados, colunas jônicas, um lenço preto deixado propositalmente sobre o móvel da sala. Se deu conta que até seu pensamento parecia aprimorado ou talvez sempre o fosse, mas não o tomava com clareza. 

Abriu os olhos e se levantou. Atravessou o corredor escuro e se dirigiu até a saída da casa. Ventava muito, mas nada que o incomodasse ou o desviasse da mesma pergunta que o colocara neste estado inquieto. Voltou a acompanhar a única pessoa que lhe fazia companhia naquela noite outonal. Desta nova posição podia ver mais detalhes. O senhor usava pijamas, parecendo bastante confortável. Sua expressão límpida poderia facilmente ser confundida com um cochilo, mas não havia como se enganar: o idoso também contemplava algo ou talvez esperasse por algo. Se perguntou o que pensaria alguém cujo fio da vida não passava de um findado novelo de lã. Por tantas vezes se sentiu assim, não por considerar que seu novelo estava prestes a acabar, mas por achar seu novelo impróprio ao tear a ponto de querer defenestra-lo a qualquer momento. Algo havia mudado... 

Depois daquela viagem para o oriente, depois do contato com aqueles mercadores, depois de ver a roda da carroça tão irreparavelmente quebrada, depois de visitar a Grande Biblioteca, depois... Seu fluxo de pensamento fora interrompido, pois havia se dado conta de que se passaram anos desde sua decisão de deixar a França. Uma brisa passou por seus cabelos e decidiu dar mais uma olhada no velho. Uma cicatriz se destacava em seu braço esquerdo. Talvez seja um otomano desertor, pensou. O tamanho e  o aspecto eram condizentes com perfuração de lâmina, uma perfuração antiga. Levou a mão ao pescoço e pressionou dois pequenos furos, quase imperceptíveis. Depois daquela noite - retomou o fluxo associativo de seu pensamento -, depois de provar seu sangue, depois de sentir o dela se misturar com o meu, depois de assumir a dupla jornada de vendedor e informante... Quanto havia acontecido nestes últimos anos... De repente achou sua vida interessante, digna de nota, talvez de uma história contada. Lembrou da viagem que fez a Paris quando era criança e pôde rememorar como se sentiu pequeno diante de Notre Dame: apenas um menino que tropeçava nas ruas de ladrilho com tantos sonhos guardados... O velho pareceu tentar se levantar, mas logo cambaleou de volta ao assento. A vela da lamparina mal podia se sustentar e, num movimento quase involuntário, estava ele ao lado de seu companheiro. 

Sem apresentações olhou para o senhor de maneira gentil e lhe perguntou:
-Isso é estar feliz? 
-Ah meu jovem... Começou ele a responder, mas parando por um momento antes de prosseguir, como se tomasse fôlego. Que pergunta mais ingênua. Não percebe quão retóricos podemos nos tornar diante da vida?

Não entendeu o sentido daquelas palavras, mas não quis interromper. Apenas ouviu:

-...ou quem sabe diante da morte. Ele olhou para a lamparina que agora iluminava quase nada e, sem lhe dirigir o olhar, prosseguiu. Acha que alcançou o que deseja? Ou acha essa também uma pergunta retórica?

O velho riu um riso abafado e cansado. Se recostou na cadeira e mirou o horizonte que pouco distinguia o céu da terra. Então, antes da vela terminar, Dimitri escutou as últimas batidas daquele coração. Parou por alguns instantes, reflexivo e ajeitou os óculos no rosto, até lembrar que os deixara ao lado do caderno de bolso, tendo apenas tocado a testa com o dedo indicador. Se sentou no chão, ao lado do velho, e olhou na mesma direção de sua derradeira visão. Enxergou a vasta planície e o caminho até Brasov. Viu uma revoada de pássaros e os primeiros indícios do sol que viria logo a apontar. Voltou para a casa, pegou um rolo de papel e tinta e redigiu uma carta relatando aquela noite. Este não era um informativo, era uma epístola a uma interlocutora estimada e carregava muito de seu sentimento. Havia adquirido este hábito de compartilhar, gostava de pensar que ela o lia como a um livro. Gostava da sensação que isso lhe trazia.

Sorriu enquanto escrevia as últimas linhas: sinto sua falta, draga mea. Dobrou o manuscrito e o colocou junto ao caderno de bolso. Fechou-o sem pestanejar e repetiu pra si mesmo: pergunta retórica?

domingo, 25 de agosto de 2024

Chame-me pelo meu nome

     Era um fato inegável: havia me apaixonado por uma bruxa. Percorria meus dedos por seu rosto enquanto constatava a verdade de meu coração. A pequena cabana em Donnelaith havia se tornado nosso refúgio e nem mesmo o frio escocês era capaz de abrandar a chama do meu desejo. Ainda conseguia ouvi-la proferir as palavras que contornaram as pedras e sacodiram as copas das árvores. Ainda podia sentir como era estar pela primeira vez em sua presença e como os olhos da pequena Deborah me olhavam com curiosidade. 

     Acompanhar seus dias se tornou minha função ou, para ser mais preciso, minha satisfação, minha discreta obsessão. A gratidão de cada um daqueles que curava era a mesma que a minha em vê-la curar. No entanto, foi quando senti seus lábios nos meus que estes pensamentos então se tornaram distantes. A tecitura temporal se distorcia nesses momentos, o que talvez se devesse ao fato de minha materialidade recém-adquirida neste mundo. Ainda havia muito a compreender, mas tinha certeza: eu amava Suzanne de May Fair. 

     Enquanto ela acariciava meu cabelo, sentia sua pele maliciosamente perfumada de unguento floral. Seu beijo, cada vez mais voraz, disfarçava um sorriso travesso que jamais me passaria desapercebido, nem mesmo em uma ocasião como essa. Me entreguei aos seus braços, repousando meu corpo sobre o dela. Amamo-nos enquanto ouvíamos o ranger das árvores que se curvavam do lado de fora da cabana. O burburinho local dizia que os ventos estavam incomuns ultimamente e nem mesmo os velhos carvalhos eram capazes de suportar tamanha força. Contudo, nada se compara à força das palavras que ouviria naquela noite, da bruxa de Donnelaith, sussurradas no ouvido: meu Lasher... Por uma fração de segundo pude admirar sua diabólica beleza e então perdi os sentidos.


quinta-feira, 6 de junho de 2024

Anacronismo

 

[19:05, 28/04/2024]
Minha querida amiga, quanto tempo demorei pra vir aqui te escrever, mas acredite: nem por um dia deixei de pensar em você. Ontem eu estava ouvindo seus áudios do Whatsapp, me bateu uma saudade! Como é bom ouvir o timbre da sua voz, ainda que doa te ouvir dizer como tava difícil no trabalho. Aqui no meu não tá muito fácil, mas não é nem isso... É como se algo tivesse acontecido na vida, algo que não sei explicar.

[19:07, 02/05/2024]
Não cheguei a te perguntar o que você acha de praias, desde pequeno tem algo no mar que me chama e parece que a voz tá cada vez mais alta. Comprei passagens para viajar, aliás, daqui dois meses estarei vendo as ondas. Tem tanta coisa que queria te contar.

[19:11, 18/05/2024]
Como ta por ai? Aquele dia a gente combinou de sair para comemorar e eu continuo esperando. No seu tempo... No seu tempo.

[18:59, 21/05/2024]
To aqui ouvindo seus áudios. Continuo achando um absurdo o que o palhaço fez. Literalmente. Esses dias vi uma série e lembrei de você, falando nisso.

[19:06, 06/06/2024]
Eu sinto como se tivesse uma porta aberta, sabe? Nunca tinha visto essa porta nesses anos. Acho muito interessante como a porta não é pra sair ou entrar, é só uma porta. Eu falo tanto pra você de ir embora, de querer achar um lugar pra mim. Fico pensando nas suas férias e em todas as vezes que me disse como tava cansada. Eu também tô cansado querida, esse lugar me cansa e eu vejo essa porta. Ela é iluminada, mas em volta é escuro. Claro que eu acho bonito, imagino que tenha dado pra notar meu gosto estético haha. Por falar nisso achei essa imagem. Por algum motivo me fez chorar. Me lembrei de quantas vezes fui embora, quantas vezes vi pessoas indo embora. Eu não gosto de despedidas e sei que minha questão é com o fim, com o capítulo final do livro. Nunca sei como acabar uma frase quando começo a falar, tem vezes que isso me faz sentir vergonha. Vou contar uma coisa que nunca contei pra ninguém... Sempre que chega perto o final de um livro eu olho o tanto de páginas e penso "não tem como essa história acabar nesse tanto de páginas". Me deixa muito intrigado pensar que já tá definido ali o fim de toda aquela história. O mesmo me acontece com séries e músicas. Com música chega a ser engraçado porque eu fico vendo o ponteiro chegando no final do marcador, pasmo como acaba sempre no lugar que foi definido pra acabar. A última nota no último segundo. Perfeito.

sábado, 25 de maio de 2024

Carta 34

 Meu amigo Allan,

Só agora pude ler sua carta e quantas sensações ela me trouxe. Não imagino como têm sido esses seus dias de adaptação. Mudar de cidade sempre me trouxe um temor antigo, quase inconsciente, e você sabe bem quantas vezes tive que me mudar. Às vezes em que penso em recomeços me lembro quando fui para aquela cidadezinha do interior. Quantas cartas naquele ano! E como foi importante tê-lo como companhia nas noites mais frias! Ontem estava arrumando a bagunça do consultório (como pode este lugar chegar a um estado tão caótico?) e encontrei aquele texto seu sobre sonhos. Eu comentei naquele dia que as primeiras frases, assim, se despedindo, concediam um ar todo melancólico que não me pareciam próprios de algo sobre sonhos. Pois hoje escrevo que não conseguiria pensar em introdução mais acertada. Ah, meu amigo, afinal sua tia estava certa, somos mais parecidos do que pensamos! E não falo dos olhos fundos de noites não dormidas. Esse jeito lacônico de se expressar, esse tom melodioso de ver, onde irá nos levar? Tenho tantas perguntas agora. Quando escreveu sobre os grãos de areia, pensava em pessoas ou nos próprios sonhos? Temo estar interpretando demais e neste momento quero sentir mais do que pensar. “Pensar usando os neurônios”, este pensar que estou evitando. Quero pensar com a mente, Allan, com a mente (será que está rindo ao ler esta frase? Eu estou). Veja, meu ponto é que os grãos de areia podem ser os próprios sonhos, tão dourados como o sol. Mais uma vez me vem sua tia falando, quase posso ouvir a voz dela me lembrando que havia esquecido de passar protetor solar. Aquelas férias de verão foram divertidas – mesmo com as costas queimadas. Somos tão jovens, o que foi feito de nós? Acha que sonhamos demais? Sonhamos porque temos esperança ou porque a perdemos em algum ponto da vida? Lembro quando me sentia feliz, mas não é como esse momento tivesse existido de verdade. Também não é como se não estivesse feliz anteontem comemorando as primeiras rosas da primavera. Sinto-me velho Allan, esquecido pelos meus próprios sequestradores que se cansaram de cativeirar e simplesmente partiram. Catatônico, sonho com a liberdade já concedida a mim. Sinto que meus membros se atrofiaram pelo ostracismo e agora que desejo me mover apenas não posso mais. Lembro quando cheguei naquela cidade gelada, o sol não aquecia, eu não tinha sonhos ou esperança. Não precisava de protetor solar. Quantos beijos na testa já dei nessa vida, quantas partidas.

Talvez isso seja só minha tristeza.

Um abraço meu amigo,
DRS

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Uma linha contínua

Sons vindos de Venus que orbita o íntimo do nosso espaço. 

Atmosfera circular que transita, formando um traço.

Saturno, com anéis, dançando no mesmo passo.

Gravidade ideal, envolta como que em um abraço.

Medida em anos luz, trajetória continua: um laço.

Tipos 4

Talvez sejam teus olhos a brilhar... 

Enquanto vejo teu retrato, 

A sensação de encontrar, 

(na doçura desse fato) 

Um lugar pra chamar de lar.

Esse desejo nato, descobre no momento exato, que 4 é número par.