Eu, diminutivo de mim mesmo, pequena parte do todo.
Recorte metonímico, refiro a mim pela metade.
Engrandeço o fracasso não experimentado, destaco a frustração potencial do engodo,
Me apresento como quem não ganha, mas sem dizer que perco de verdade.
Tento a todo custo, tomando cuidado para conseguir me afogar no lodo.
Chego no limite, desafio-o, trapaceio. Ganho sem ter do vencedor a autoridade.
Me orgulho da perda, enalteço o sacrifício e exercito o incômodo.
Mas no fundo, só não quero perder ou ganhar como qualquer um, sem iniquidade.
Quero a lama na cara e os louros da guerra, mesmo aquela em que me explodo:
Para o soldado ferido, que se levantem monumentos!
Para os desejos por mim evitados, que escutem os meus lamentos!
Acho que nada sou ao invés de ter certeza.
Mais fácil seria crer que até o esgoto tem sua beleza.
Não posso evitar, engulo minha ânsia por ganhar enquanto jogo dados por azar, sem saber que resultado vai dar.
domingo, 18 de junho de 2023
"Are you hiding away, lost, under the sewers?"
quinta-feira, 25 de maio de 2023
Navegando em mar aberto
Por um caminho arenoso deixo meus pequenos passos,
Trecho estreito, de longas ramas verdes e galhos marrons.
Uma via de mão dupla. No chão, outros pés se somam aos rastros.
De repente um clarão e o mundo se abre, novas cores e sons.
Não fosse minha curiosidade! Não fosse a vontade de juntar pedaços!
Adiante a imensidão: o azul do mar e o branco das nuvens compondo tons.
Sinto o vento tocar meu rosto e as pegadas agora formavam traços,
Linhas soltas que, tingidas pela maresia, me traziam sentimentos bons.
Em meio a este espaço, acolhido como que por um abraço, diante do mar, formando laços.
quarta-feira, 19 de abril de 2023
Oceânica
Ela é como o mar, oceânica.
Inteira e peninsular.
Dela emana a aura solar, vulcânica.
Intensa e a se descasular.
De delírio interestelar, epifânica.
Atenta, a observar.
Oceânica como o profundo do mar que eu amo admirar.
Oceânica, como gosto de a chamar.
sexta-feira, 7 de abril de 2023
No reflexo da água eu vi
Pensava que o amor era tudo. Um fim em si mesmo, a presença que anula a falta, a totalidade capaz de preencher o vazio.
Pensava que o amor era um ponto final. O fim da solidão, da tristeza, da incompreensão, de tal forma que o amor bastaria.
Pensava que o amor era mudo, sacrificial. O fim de uma busca, um voto em troca da linearidade de um caminho exato e longínquo.
Pensava e, debruçado sobre a margem de um lago, pensei uma segunda vez.
Pensei que o amor é água.
Água que nutre, que promove a vida.
Água onde é possível boiar relaxadamente na superfície ou mergulhar em sua profunda imensidão.
Água que pode ser refrescantemente bebida.
Água que movimenta, desequilibra equilibrando, modifica.
Água que faz a planta crescer e a solidez da pedra ceder.
Água de mar, que se estende e se conecta com o que está longe.
Água de rio, que nasce e busca desaguar em um curso maior.
Água cuja superfície reflete o sol e a lua e, para quem que deseja olhar, também é possível se ver.
Pensei que o amor é o prazer da busca, a eterna aventura do marinheiro que se lança em direção a um sonho, mas que nunca sabe o que irá encontrar no caminho.
Pensei que o amor também é o conjunto de possibilidades infinitas de se encontrar a cada vez que algo afeta seu espelho d'água, criando grandes círculos que se propagam com o passar do tempo.
Pensei que a água está na chuva, nos oceanos e riachos e que está dentro do meu corpo. Desde o gelo do pico montanhoso ou do orvalho da manhã,
O amor está em tudo.
sábado, 4 de março de 2023
Metalinguagem Pas de Deux
Leio e amo, simplesmente amo.
Cada verso, dito de tão peito aberto.
Cada rima, cada aliteração, o ritmo próprio da prosa.
Cada sentido que se desvela por detrás da frase.
Cada temor que se esconde no advérbio e cada sonho que se desvela no verbo.
Cada vez que leio, te sinto. Te encontro em cada R que leio com a tua voz.
Amo e leio, simplesmente leio.
Cada peito aberto, feito de tantos versos.
Cada ritmo, cada frase, o sentido fiel do amor.
Cada sentimento e o mistério que permanece por trás de todo ardor.
Hoje encontrei aquela estrofe sobre a chuva e a linha do horizonte se misturou com a do caderno.
Li, amo
sábado, 25 de fevereiro de 2023
A garota da praia
Foi em uma manhã entre os meses
de junho e julho quando decidi repousar em uma praia. Era um dia calmo em que
as ondas quebravam baixo e um pedra pareceu bastante convidativa para sustentar
um corpo cansado em busca de um cochilo. Fechei os olhos e, em um instante, o Deus
dos Sonhos me agraciou com sua areia.
São ruínas
de um castelo na encosta do mar, que revolto, golpeia as paredes rochosas. Um
ponto branco se destaca, corre em direção ao penhasco e se lança. Uma fita se
desprende do vestido de renda e plana no ar. Atrás um relógio gigante surge eclipsando
a noite, seus ponteiros giram enlouquecidos e em seu interior um garoto de
cabelos longos corre por uma rua de ladrilhos. Então tropeça e cai para fora do
relógio: a cena se torna a queda da maçã de Newton. Porém o encontro não é com a
grama do solo, tampouco com as rochas ao pé da montanha, mas com a terra de uma
pequena ilha. Naufragado, vê o castelo lá de baixo, em uma mão a fita branca,
na outra um relógio de bolso. A ilha começa a afundar e o garoto a rezar uma
promessa. Segura os objetos com firmeza junto ao peito. Apenas as torres frontais
do castelo podem ser vistas. Tudo começa a flutuar e um gosto salgado alcança a
língua do garoto. Os olhos marejaram e o ar acaba.
Acordei com
uma onda que alcançara meu rosto. Atônito, tentei respirar o mais fundo que
conseguia. O mar havia subido até a altura da pedra que me reconfortava e minhas
roupas ficaram molhadas. O sol estava a pino e havia areia em meu rosto. Não
poderia imaginar que o mar chegaria até ali, assim como jurava que estava sozinho
naquela praia.
Tentei logo me recompor quando notei
que havia uma garota que caminhava na praia pegando conchas trazidas pelas ondas.
Seus pés descalços deixavam rastros na areia molhada. Seu passo era rápido, mas
não agitado ou apressado, assim como o vento que, livre, pode percorrer velozmente
longas distâncias se assim desejar. Se continuasse naquele ritmo e naquela
direção, inevitavelmente, logo me alcançaria. Contudo, justo quando eu esperava,
ela parou e se demorou há alguns metros do meu corpo. Me olhou e, vendo que eu
a olhava de volta, apontou para o que julguei ser o horizonte ou talvez fosse para
o mar. Imagino que minha expressão desconcertada a tenha trazido júbilo, pois
sorriu. Era um sorriso especial que combinava dentes bonitos com a expressão de
um afeto que transitava entre a ludicidade juvenil e a malícia burlesca.
Sem que tivesse sido solicitado, me justifiquei: falei sobre estar dormindo e ter sonhado, acordando com a água no rosto. Foi nesse momento que ela se aproximou e se agachou para prestar atenção no que eu dizia. Ao se inclinar, ficou pendurado em seu pescoço um colar feito da junção folhas, cipós e pequenas flores. Seu dorso era bastante delineado, o que para mim lhe conferia um charme singular. Ela me perguntou sobre o sonho e, mais tarde, quando lembrou de um sonho seu, sentou ao meu lado para contar. Nesse instante não pude deixar de reparar no desenho de um castelo em um de seus braços. Uma construção sólida contornada por um delicado pé de amora. Logo meu juízo se perdeu nas figuras oníricas de seu relato. Intrigado, lhe fiz uma série de perguntas, as quais foram seguidas de respostas e novas questões.
Neste pequeno espaço da praia
viajamos o mundo, questionamos a origem da vida e a existência do bem e do mal.
Descobrimos o segredo do universo para no minuto seguinte rirmos de tamanha audácia
e ingenuidade. Falamos sobre nós, sobre a solidão e sobre o amor. E desenhamos na
areia as expressões mais íntimas de nosso inconsciente. Foi então que paramos
para ouvir o som das ondas. O mar estava calmo, então percebi que sua voz aveludada
me passava a mesma sensação de calmaria. Paradoxalmente, não transmitia apenas
calma, pois o veludo é tecido que conforta, mas também esquenta. De alguma
forma aquela voz era capaz de atingir uma frequência de ondas que podia ser
ouvida de dentro: a garota falava pra mim, mas também falava comigo. Ali nos
encontramos e foram os olhos que fizeram a mediação. Os dela eram levemente
amendoados, da mesma cor dos meus, e em seu interior brilhavam chamas. Nos
olhamos, mas tenho certeza que vimos muito além dos sentidos, algo que não
consigo explicar com palavras. Nos amamos com a profundidade do oceano, eu e a
garota da praia.
Acariciei
seu rosto e ela me beijou. Então levantou e mais uma vez apontou para o horizonte,
que entardecia. Ela sorriu o sorriso
mais doce e voltou a andar na praia. Corri para procurar meu caderno de bolso e
só ao segurá-lo nas mãos lembrei que havia sido molhado horas atrás. Mas
precisava escrever as palavras que saltitavam em meu coração. Olhei para os
desenhos na areia e, com a ponta do dedo, escrevi ao lado, com a mais
bela grafia que a motricidade me permitia:
Era hora do sol se pôr. O som das
ondas ecoava dentro e fora de mim. Meus olhos marejaram, respirei e senti o ar
em todo meu corpo. Sorri assistindo a noite chegar.
terça-feira, 21 de fevereiro de 2023
Nos trilhos do trem
Ligas de aço-carbono com manganês distribuídos em 50%, a composição mais favorável para resistir aos desgastes potenciais.
Duas linhas que caminham paralelas para sustentar a travessia do trem:
Na cabeça ocorre o contato com as rodas que tocam o trilho;
Na base ocorre o contato com o solo, conferindo estrutura;
Finalmente, a alma faz o contato entre a cabeça e a base.
O trem é uma peça rara. Sua locomotiva a vapor é alimentada por carvão e a capacidade da caldeira é ilimitada. Quem sabe qual velocidade e potência poderia atingir?
Atrás se encontra o vagão de transporte, uma construção rústica de madeira. Grandes janelas permitem acompanhar cada detalhe da viagem e assentos estofados conferem um conforto sem igual.
Na ponta, o vagão de carga: uma grande câmara de metal capaz de armazenar e distribuir suprimentos, mantimentos e bagagens.
Cada viagem é única. Partidas, chegadas, pausas para manutenção, viagens ao interior... Trechos curtos, longos, sinuosos, subidas, descidas, grandes retas...
São tantos destinos quanto estrelas no céu e é aí que o trem mostra sua característica mais especial:
Toda noite, do alicerce da base, as rodas se soltam da cabeça e se elevam em direção ao céu. Guiado pela lua, cruza as nuvens e alcança a estratosfera. De lá a vista é sublime: astros dançam na imensidão enquanto a terra se torna uma só. Tempo e espaço não mais se aplicam e todo o trem é tomado por um aroma característico de grama fresca. Assim, o trem voa pela imensidão para que então retorne e pouse suas rodas na cabeça novamente, percorrendo viagens pela vastidão.
segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023
Poesia à duas mãos ou Sobre o amor
Amar o mar
Quando me encaracolo em ti
Quando tua voz toca minha alma
Quando estamos juntos, enfim
O maremoto vira calma
Quando te sinto em mim
Quando seu cheiro toca meu ser
Quando estamos juntos, enfim
O amor resplandece seu poder
Amar o mar
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023
Morrer na praia
Sem remos ou rumos.
No profundo do azul, a derrocada:
Restos de barcos póstumos,
Rastros de uma trilha abandonada,
Pedaços de uma vela rasgada,
Representando aquilo que realmente somos:
Nada. Nada?
Vejamos:
Nada pela liberdade (desejada).
Ainda que pudéssemos manter cada grão de areia na enseada,
Mesmo que estivéssemos na mais firme jangada,
Morremos na praia, mesmo após árdua remada.
Dos ermos da morte jamais haveria escapada.
Retornamos, marinheiro: nada, nada, nada.
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023
ELaboração parte 2
Voava cansado o elfo mais novo, o horizonte cada
vez mais alaranjado. Seria o crepúsculo daquele dia o presságio do fim.
Apenas voava, em direção reta, olhos muito fixos no
além-mar, nada podia contê-lo. Pequenos rastros de vento ficavam para trás com
os movimentos rápidos e curtos das batidas de suas asas.
Sentiu um aperto no peito que o fez cambalear, mas
seguiu ignorando. Nesta região, as nuvens haviam se tornado mais densas e
escuras e foi quando, mais adiante, uma tempestade que se formava o obrigou a
não ignorar mais nada.
Chovia forte e as densas nuvens exigiam que o
destemido elfo ziguezagueace pelo ar. Manobras rápidas e precisas o levavam em
direção a um destino que já não podia mais ver. Quando fixava os olhos a sua
frente apenas borrões acinzentados se misturavam ao escuro do anoitecer.
A pressão da chuva o compeliu a manter os braços a
frente do rosto. Tentava se proteger, mas, naquela velocidade, cada gota era
como uma lâmina afiada. Ao longe se ouvia um ronco no céu. Irado, lançava raios
cujas descargas atingiam violentamente o chão abaixo. Um destes irrompeu poucos
metros à frente do elfo, que viu uma árvore ser atingida e arder em chamas,
mesmo da altura em que voava.
No entanto, sem que tivesse tempo para se recuperar
do susto, o raio seguinte fora mais certeiro e atravessou a asa esquerda do
elfo. Já não podia mais movê-la. Por mais que insistisse e se esforçasse, a asa
simplesmente ficava aberta, inerte, disfuncional... rompida.
Uma súbita sensação de urgência tomou conta do
elfo, sua outra asa batia freneticamente criando tons azulados no ar. Como uma
estrela cadente, o acinzentado azul anil podia ser visto de longe, sucumbindo.
Braços e pernas se sacodiam e nem mesmo todo esforço necessário evitaria a
queda do elfo.
Ao contrário do que imaginava, sua queda foi lenta,
gradual. Talvez a asa direita tivesse encontrado uma forma de aumentar a
resistência do ar, talvez fosse apenas a sensação de que tudo a sua volta
estava parando no tempo. Tentava olhar a frente, mas os clarões dos novos
trovões mostravam agora o escuro horizonte de uma noite sem lua.
-Eu tinha tanto a fazer! Gritava e repetia.
Não é possível dizer quanto tempo transcorreu até
que atingisse o solo. A chuva havia passado e todo seu corpo doía. Sentia
cheiro de terra, mas o gosto em sua boca era de sangue. Não podia se mover.
Era madrugada e um vento frio o fez recobrar
parcialmente a consciência. Tentou olhar em volta e reconheceu pela vegetação
um lugar familiar, ainda que não tivesse certeza qual era. Tentou se levantar,
mas, sem sucesso, permaneceu em solo úmido. Um conjunto de vagalumes passou
diante de seus olhos. Sua dança hipnotizante fez o elfo mais novo alucinar e de
repente viu dragões em volta de um castelo. Tudo desapareceu nos minutos
seguintes. Seus olhos estavam cansados e então mais uma vez adormeceu.
Do silêncio absoluto começou a ouvir grilos e sapos
orquestrando um tema e uma sensação de calor preenchia sua pele ferida.
-Por que você faz isso? Perguntou o elfo mais velho
sem resposta.
A pergunta chegou aos ouvidos do elfo mais novo
como uma melodia rouca e revigorante. Aquele tom, aquela prosódia... Não sabia
onde estava, mas sabia que era seguro. Tentou se levantar e olhar em volta: no
tronco de uma árvore se encontrava uma confortável morada. A grossa casca
guardava do frio e concedia proteção. Não sabia como havia sido feito aquele
buraco, mas tinha certeza que a morada e seu morador estavam em perfeita
sintonia. Folhas cobriam o chão e pequeninos galhos forravam uma cama onde o
elfo mais novo repousava. Enquanto reparava, novamente a melodia preencheu seu
interior:
-Naquele dia eu decidi fazer um caminho diferente
para casa. Estava olhando pra cima, seguindo uma estrela brilhante, e de
repente me deparei com um corpo. Se aproximando do elfo mais novo, prosseguiu:
-Sabe o que é mais interessante? Você chegou por
conta própria. Eu até me assustei quando te vi aqui. Nesse momento franziu o
nariz e continuou. Foram três dias, sempre que passava por lá te dava água e
algumas folhas de courama-vermelha amassadas, parece que fizeram efeito. Bom,
efeito para o seu corpo né, não sei quanto a sua mente. Por que você fala
dormindo? Quer dizer, são tantas histórias, uma mais louca que a outra, acho
divertido. Nesse momento sorria com uma graça única aos olhos do elfo mais
novo, que neste momento conseguiu falar.
-Você realmente não sabe como eu cheguei
aqui?
-Você realmente não lembra? Retrucou.
O fato de conseguir falar o surpreendeu, mas não
mais do que o de ter ido até o lar de alguém sem um único registro.
-Tá se perguntando sobre o motivo de ter vindo
parar justamente na minha casa? Era como se tivesse lido a mente do outro elfo.
Olha, você pode ficar, tá tudo bem.
Confuso, o elfo mais novo se sentou e tentou
organizar os pensamentos. Sua cabeça ainda doía e não conseguia lembrar...
Subitamente seu pensamento foi interrompido por um clarão no céu e o som de um
trovão. Começou a tremer quando se deu conta do que havia acontecido. O elfo
mais velho então colocou a mão em seu ombro e disse firmemente:
-Estranhos são os mistérios e quente é o sol de
Icarus... Logo se levantou e se dirigiu a entrada do tronco. Como eu disse,
você pode ficar, sinta-se em casa. Até mais tarde. E saiu.
O elfo mais novo se deitou novamente e ao fechar os
olhos voltou a escutar os sons a sua volta. Era capaz de ouvir a madeira
envergando com o vento, assim como o som de sua respiração. Por um instante
pensou ter morrido e alcançado o além, ou mesmo que estava apenas sonhando
enquanto seu corpo jazia inconsciente em algum lugar. O tremor começava a
passar e as memórias a se tornarem turvas. O pio de uma coruja ecoo logo acima
de onde estava. Não havia nada a temer, nada a combinar ou conquistar.
Adormeceu.
Quando deu por si estava em meio a um campo de
girassóis, a grama muito verde e macia confortava seu corpo. Sua primeira visão
foi a de um elfo que dançava graciosamente entre as flores. O aroma do ar era
doce e delicado. Ao notar sua presença consciente, o elfo mais velho o tirou
para dançar. Sorria enquanto rodopiavam e saltavam de flor em flor. O elfo mais
novo logo estava rindo e dando cambalhotas no ar. Suas asas nunca estiveram tão
fortes.
-Sabe o que eu me pergunto, elfo? Iniciou o mais
velho. Por que lutar nos campos de batalha quanto podemos dançar num campo de
girassóis? Não vai me dizer que está pensando em escudos e espadas?
-Eu não sei. Respondeu o mais novo. Realmente não
sabia ou não precisava saber, simplesmente naquele momento não precisava fazer
sentido. Fechou os olhos e respirou profundamente. Foi quando os lábios dos
elfos se tocaram.
Quando abriu os olhos, estava deitado. O sol nascia
no horizonte. Seria o amanhecer daquele dia o presságio do início?
domingo, 5 de fevereiro de 2023
Sinal que bate para ir embora
Crianças corriam pra lá e pra cá
enquanto um som ensurdecedor de sirene ecoava por todos os cantos do colégio. O
pátio externo fervia com o sol do meio dia e o marasmo atingia uma certa
criança que arrastava os pés enquanto andava em direção à saída.
Não reparou quando uma garota de
cabelos encaracolados passou pela sua frente, saltando sobre sua mochila de
rodinha para encontrar o pai que adentrara os portões para buscá-la. Não
reparou na figurinha amassada aos pés do bebedouro que era puxada e empurrada
aleatoriamente pelos pequenos pés que marchavam rumo à liberdade. Teria sido
uma figurinha rara? Àquela que completaria sua coleção? Jamais saberia... Não
reparou que neste dia em específico o vento dobrava ao sul, e não a oeste, como
de costume. Tampouco que seus movimentos lentos a deixavam pra trás, talvez
mais do que poderia imaginar.
Pouco a pouco o pátio foi se
esvaziando e apenas ecos vinham das salas de aula que agora jaziam obsoletas. O
ranger do portão externo fez-se ouvir: o relógio marcava 12h30 e o bedel fechou
um dos lados da saída, uma vez que a maioria dos alunos já havia partido... Não
fosse por uma criança, estarrecida em frente à saída, olhos fitando o solo
quente do asfalto por onde o carro de seus pais jamais passou.
Um professor de alta estatura se
aproximou da criança e acariciou seus cabelos, para logo em seguida sair
apressado e embarcar em um taxi. Após ele, a diretora, com sua costumeira
echarpe azul turquesa, atravessou o portão deixando um sorriso à criança. Logo
atrás, a professora de história, a “Tia da cantina”, o professor de artes e a Dona
Odete. Esta última, talvez uma professora dos anos mais tardios foi a única que
se deteve por um momento para conversar com a criança:
–Ei, onde estão seus pais? Disse ela de maneira empática.
–Eu não sei.
Não foi a resposta que a assustou, mas como cada palavra
havia sido enunciada: não havia afeto, não havia direção.
–Hum... Sempre te vejo aqui esperando, mas parece que já
passou algum tempo... Alguém está vindo te buscar?
–Eu não sei.
Novamente aquele tom, mas dessa vez cada palavra havia sido
escandida. Confusa, a mulher se abaixou e segurou nos ombros do menino.
–Você tá bem? Eu posso te ajudar? Tentou ela.
–Eu não sei...
Fora a primeira vez que a criança
dirigiu o olhar a Dona Odete e seu tom havia se tornado profundo, quase
reflexivo. A senhora deu um passo para trás, em seu rosto um misto de confusão
e desconforto. Assim, prosseguiu tirando uma nota de 10 do bolso:
–Olha, eu preciso ir, liga para os seus pais, daqui a pouco
o portão vai ser fechado.
Aflita, ela amassou o dinheiro na mão da criança.
–Se precisar, compra alguma coisa pra comer. Eu vou indo,
tá...? Adeus.
Dona Odete atravessou o portão apressada e desapareceu ao
cruzar a esquina.
O bedel, que até então não havia demonstrado interesse algum
na criança ou na cena que esta protagonizava, decidiu intervir:
–Olha, são meio dia e quarenta, você vai ficar aí o
dia todo? Eu tenho que ir embora.
Ele parou um instante para examinar o pátio agora vazio e
prosseguiu:
–Eu tenho criança pequena em casa... vou esperar mais 20
minutos, é o máximo que posso fazer por você.
Quando terminou de falar voltou à
inércia inicial. Mal reparou que não havia aguardado qualquer resposta de seu
interlocutor ou que mal havia o olhado. Talvez, se fosse mais atento, teria
visto uma lágrima no canto dos olhos da criança que se encontrava na mesma
posição: olhos no asfalto e a mão segurando a nota de 10.
O vento soprava por entre as grades do portão. 15 minutos
haviam se passado e o bedel, incomodado, resmungou:
–Escuta, eu vou ligar para os seus pais, você sabe o número?
Sem resposta, insistiu:
–Assim você não tá me ajudando, qual é o seu problema?!
Ainda sem resposta e agora mais exaltado prosseguiu:
–É o seguinte, eu vou fechar esse portão, vou lá em casa dar
comida pra menina e daqui 15 minutinhos eu venho abrir o portão. No caminho eu
vou passar no posto da polícia e mandar eles virem te ajudar, você me entendeu?
Cada parte de seu plano foi bem enfatizada, como se tentasse
ser o mais claro possível ou mesmo como se estivesse falando com alguém de
poucos recursos cognitivos.
A criança estremeceu e dirigiu um
olhar suplicante ao bedel. O adulto, por sua vez, ignorou qualquer sinal de
receio, trancou o portão e foi embora murmurando algo incompreensível. Do lugar
deixado vazio pelo bedel, dirigiu o olhar para o relógio na parede: os
ponteiros marcavam 16h00.
Batidas de coração se tornaram
audíveis, o suor molhava a amassada nota de 10 e o calor estava cada vez mais
intenso. A criança balançou a cabeça a apertou os olhos para tentar ver com
mais clareza: 16h01, não havia dúvida. Duas reviradas no estômago, cambaleou e se
sentou junto ao portão. 16h07, os minutos passavam depressa. A respiração se
tornou pesada, vacilante. Mais duas olhadas no relógio: 09, 10, 11.
Os tempos haviam sido difíceis, era
verdade. Não sentia mais tanta vontade de brincar como antes, era verdade
também, mas isso era diferente de tudo.
–Eu lembro... Era meio dia... Ele disse que voltaria...
A voz vinha da cabeça e tinha como endereço a própria
cabeça. A criança apertava a nota contra os dedos. Seu corpo estava rígido.
Olhava para o pátio rastreando qualquer coisa. Uma caneta perdida, a porta do
banheiro aberta, a bola de vôlei. Qualquer coisa.
–Eu quero ir embora! Tá tarde...
16h34. Sentiu uma urgência de
fazer algo. Pular o muro? Alto demais. A saída de carros? Fechava 12h00. Mas
mesmo se saísse? Perambularia até sua casa? Não... Não iria... Sabia que
ultimamente não tinha energia nem para correr no recreio, que dirá fazer todo o
trajeto a pé.
Sua visão ficou turva. Não sentia
fome, mas poderia estar há muito tempo sem comer. Não fazia sentido, como
ninguém passava na rua? Como ninguém deu falta? Quanto mais pensava mais escura
ficava sua visão. Sentia que o colégio estava sumindo pouco a pouco. Já não via
as portas da sala de aula e do pátio restou apenas a metade. O lado de fora do
portão se tornou um mundo à parte, distante e inatingível. Checou o relógio:
17h00.
–Agora eu... vou ter que ficar aqui?
–Amanhã todo mundo vai chegar.
–Amanhã?
–Eles vão vir
amanhã e tudo vai ficar bem.
–Amanhã?
–Amanhã...
Subitamente esta palavra lhe causou
ânsia. 17h05. As entranhas foram se contorcendo e a palavra “amanhã” ecoava initerruptamente
na cabeça da criança. Este impulso poderoso lhe fez se levantar e correr o mais
rápido que pôde. Não tinha visão periférica, apenas borrões paralelos ao seu
caminho que tinha a porta do banheiro como destino. Aos poucos o restante do
pátio foi se tornando visível novamente, assim como a pia amarelada do
banheiro.
Se debruçou sobre a pia, mas suas
pernas cederam. Estava pendurado pelos braços quando preencheu a cuba de
vômito. Sua visão se tornou ainda mais confusa e uma vertigem impediu qualquer
clareza perceptiva. A cada movimento peristáltico pensamentos soltos se
sobrepunha uns sobre os outros:
–Eu não podia...
–Tive que correr...
–Amanhã...
–Ninguém percebeu!
–Eu não quero ficar aqui...
–Cadê a profe?
–Ele não voltou.
–Cadê todo mundo.
–Eu não quero.
–Amanhã é muito longe!
O som do ponteiro do relógio se
tornou alto suficiente para ser ouvido de onde estava. O odor era claro, mas em
sua percepção o conteúdo era vermelho. O que estaria acontecendo? As batidas do
coração criavam um ritmo único com as do relógio.
Se sentia fraco e agora nem seus
braços poderiam mantê-lo em posição vertical. No chão tentou se arrastar até o
portão. Tão distante, tão inalcançável. Sua mão direita, utilizando
as ultimas forças, se esticava em direção às grades como se magicamente pudesse
alcança-las sem precisar se deslocar.
Os sons se confundiam com as
imagens. O solo do pátio era quente e áspero. Apenas um objetivo, apenas alguns
metros, apenas mais um pouco de tempo, apenas mais um esforço. Contudo, foram
apenas centímetros e logo a volição deixou seu corpo já bastante desgastado
pelo momento. As piscadas foram se tornando longas e contínuas. Mais alguns
centímetros e sentia o concreto ferir seus membros débeis.
Três toques do relógio, os
derradeiros. Sua cabeça cedeu e encostou no calor do pátio do colégio.
A polícia chegou ao local
combinado acompanhada do bedel que, apressado, mal conseguiu encontrar a chave
certa em meio ao molho. Quando as grades finalmente se abriram, revelaram um
menino deitado abaixo do relógio, há poucos passos do portão, sua cabeça estava
voltada para o céu ensolarado. A camiseta de seu uniforme, antes branca, estava
ensopada e se tornara rubra. Os ponteiros marcavam 13h30.